Prof.
Dr. Ulysses Fagundes Neto
A
renomada revista Gastroenterology publicou um artigo de revisão,
em abril de 2021, intitulado “The microbiota-gut-brain axis: from motility
to mood”, de Margolis KG e cols., que abaixo passo a resumir em seus
principais aspectos.
Introdução
A compreensão de
que o cérebro e o intestino coparticipam, de forma contínua, um fluxo de
comunicação bidirecional foi reconhecido em tempos tão remotos quanto a Grécia
antiga, onde os filósofos Hipócrates, Platão e Aristóteles já haviam postulado
que o cérebro e o restante do corpo estão intrinsicamente conectados. Esta
noção levou à compreensão de que para estudar o processo das enfermidades, o
indivíduo como um todo deve ser levado em consideração, mais do que um sistema
de órgão isolado. Entretanto, foi apenas em 1840 que William Beaumont
demonstrou experimentalmente que o estado emocional afetava o ritmo da digestão
e, assim sendo, que o cérebro afeta o intestino, desta forma concluindo que
existe um eixo cérebro-intestino. Embora este conceito tenha sido
subsequentemente reconhecido por renomados biólogos incluindo Darwin, Pavlov, James
Bernard e Cannon, foi apenas nos primórdios do século XX que, as primeiras
observações cientificamente descritas, foram elaboradas para correlacionar as
mudanças da fisiologia do trato digestivo com as alterações da emoção.
Entretanto, esses estudos resultaram limitados em consequência das técnicas
rudimentares existentes, e a inexistência de estudos dos efeitos recíprocos das
alterações na fisiologia do trato digestivo sobre as funções mentais. Informações
emergentes têm confirmado as conexões entre a saúde do cérebro e do trato
digestivo e, além disso, têm sugerido diversos fundamentos mecanicistas. Transtornos
na função gastrointestinal e sintomas digestivos têm sido relatados associados
a um número cada vez mais crescente de transtornos do Sistema Nervoso Central
(SNC), tais como a Síndrome do Intestino Irritável (SII), a qual está
frequentemente associada a sintomas psicológicos e diagnósticos psiquiátricos.
Além disso, com o advento das imagens do cérebro, as interações reciprocas
puderam ser visualizadas pela primeira vez, demonstrando que o estímulo
digestivo pode ativar regiões chave do cérebro envolvidas na regulação da
emoção.
Inúmeros aspectos
da fisiologia gastrointestinal estão sob controle neural, o qual é exercido por
meio de uma vasta rede de neurônios entéricos intrínsecos e a glia, que se
difundem através do Sistema Nervoso Entérico (SNE), músculo liso do trato
gastrointestinal, e a lâmina própria da mucosa, bem como a inervação extrínseca
desde as fibras aferentes primárias e autônomas que conectam o intestino à
medula espinhal e o cérebro. Embora o SNE regule o peristaltismo intestinal de
forma praticamente independente da ação do SNC, sua motilidade é também
modulada por fatores intrínsecos ao SNE, incluindo o cérebro e outras divisões sistema
nervoso autônomo (SNA), sistema imunológico associado ao intestino, e o
microbioma intestinal. A influência sobre o intestino não é unidirecional, pois
o intestino também envia informações para esses vários sistemas através de
trajetos complexos que funcionam como conduites bidirecionais para a homeostase,
e, anormalidades desta comunicação estão associadas a enfermidades. A função
adequada do intestino é, portanto, um fator crítico para não somente a
sobrevivência a longo prazo, mas também, para a homeostase do eixo
cérebro-intestino. A informação precisa de como ocorre a comunicação
intestino-cérebro na saúde e na enfermidade em humanos, entretanto, permanece como
uma área de ativa investigação.
Recentemente, o
microbioma intestinal (os trilhões de microrganismos que residem no intestino)
surgiu como um participante integral na comunicação intestino-cérebro e por
isso passou a ser proposta a designação eixo microbioma-intestino-cérebro.
Embora estudos dos mecanismos sobre como esta comunidade de microrganismos em
expansão influencia no desenvolvimento do SNE e SNC humano, motilidade
gastrointestinal, estado emocional, cognição e aprendizado, ainda estão dando
seus primeiros passos, já oferecem propriamente um aspecto potencialmente
importante para futuras intervenções terapêuticas (Figura 1).
A microbiota
intestinal se comunica com o SNC por meio de canais de sinalização imunológicos
neuronais e endócrinos. Por outro lado, o SNC pode afetar a microbiota
intestinal de forma direta por meio de expressão genética induzida por
mediadores de violência e indiretamente através SNA que intermedia o controle
da função intestinal (por exemplo motilidade, modulação imunológica e secreção)
(Figura1). Além disso, o SNE pode modular diretamente a composição microbiana
por meio de alterações na secreção, motilidade, permeabilidade e defesa
imunológica. Estas vias paralelas e de integração estão emergindo para os
investigadores na forma de uma matriz complexa de comunicação, a qual também
tem sido referida como a conexão intestinal.
Microbiota e o
Desenvolvimento do SNC
De uma maneira
geral, os processos fundamentais neurais centrais, incluindo o desenvolvimento
da mielinização, neurogênese e ativação da microglia, foram demonstrados ser
dependentes da composição da microbiota. A evidência mais forte a respeito do
papel da microbiota no neurodesenvolvimento veio de pesquisas em camundongos
livres de germes (LG). Estudos onde roedores LG foram recolonizados com uma
microbiota “normal” em diferentes idades, demonstraram que a recolonização após
o desmame é mais eficiente para restaurar as deficiências dos LG do que a
recolonização na vida mais tardia, no mínimo, para aspectos específicos do
cérebro, função imunológica e comportamento. Além disso, outras funções nos
animais LG, tais como, aquelas que afetam a neurotransmissão serotonérgica do
SNC, não podem ser restauradas pela recolonização na idade do desmame, sugerindo
que a janela para a influência microbiana nestas funções já está fechada.
Embora estes
estudos em camundongos LG tenham sido importantes para fornecer evidencias que
dão suporte ao conceito de que o microbioma está envolvido nos processos do
encéfalo em relação a sinalização de estresse hormonal, função neural e neuro proteção,
ainda existem significativas limitações para traduzir estes achados para os seres
humanos.
Mecanismos de
Sinalização da Microbiota para o Eixo Intestino- Cérebro
O ramo aferente
do nervo vago é o principal conduite que conecta o trato gastrointestinal ao
núcleo do trato solitário e a maior rede de regulação da emoção no cérebro dos
mamíferos. Embora este ramo aferente não pareça interagir diretamente com a
microbiota intestinal, a evidência sugere que o nervo vago pode ser o sensor
dos sinais microbianos na forma de metabólitos bacterianos, ou ser influenciado
via a modulação mediada pela microbiota sobre as células enteroendócrinas e
enterocromafins localizadas no epitélio intestinal (Figura 2).
Por exemplo, as
bactérias intestinais produzem metabólitos dos ácidos graxos de cadeia curta,
os quais regulam funções fisiológicas intestinais, incluindo aquelas que
envolvem a motilidade, a secreção e a inflamação, através dos seus receptores cognatos
ácidos livres de gordura. Além disso, outros receptores presentes nas fibras do
nervo vago, tais como aqueles para a serotonina e outros receptores
intestinais, também podem facilitar essa via de mensagem. Estudos realizados em
camundongos vagotomizados, salientam os possíveis papeis exercidos pelo nervo
vago, na comunicação do SNC-Microbiota, a qual pode ser traduzida para o estado
emocional dos seres humanos e pelos transtornos neurocomportamentais. Por
exemplo, em camundongos a vagotomia demonstrou ser capaz de bloquear a
sinalização central para as espécies de Lactobacillus e Bifidobacterium,
resultando no aprisionamento dos seus efeitos modificadores do estado
emocional.
Um sistema
bidirecional de comunicação entre a dieta, o microbioma intestinal, as células
enterocromafins e o nervo vago, foi recentemente descrito. As células
enterocromafins contém mais de 80% da serotonina corporal, e, a síntese e a
liberação da serotonina pelas células enterocromafins é modulada pelos ácidos
graxos de cadeia curta e 2BAs produzidos por esporos formadores de Clostridiales.
Estes microrganismos aumentam suas ações estimulantes sobre as células
enterocromafins induzindo a uma aumentada disponibilidade do triptofano
dietético. As células enterocromafins também se comunicam com as fibras
aferentes do nervo vago, através de conexões sinápticas de extensões similares
aos neuropódios das células enterocromafins. Por outro lado, o SNA pode ativar as
células enterocromafins para liberar serotonina no lúmen intestinal, onde ela
pode se unir aos mecanismos de transporte similares à serotonina e influenciar
na função da microbiota intestinal.
Serotonina: um
regulador chave do eixo microbioma-intestino-cérebro no intestino e no cérebro.
Há crescentes
evidências de que a serotonina é um dos fatores chaves do eixo microbioma-intestino-cérebro
com sinalização no cérebro, no intestino e na comunicação intestino para o
cérebro. De fato, estudos recentes tem demonstrado que bactérias especificas
formadoras de esporo, tanto em seres humanos como em camundongos, aumentam os
níveis colônicos e sorológicos de serotonina, e regulam a dismotilidade
intestinal pela produção de ácidos graxos de cadeia curta devido ao aumento da
produção da serotonina (Figura 2). Evidências recentes sugerem que a serotonina
liberada pelas células enterocromafins, se comunica com um microbiota
intestinal, Turibacter sanguinis, o qual possui mecanismos de captação
da serotonina, a qual está envolvida na sua colonização e na fisiologia do
hospedeiro. A microbiota intestinal também tem sido demonstrada ser capaz de
induzir a maturação do SNE adulto via ativação dos receptores de serotonina.
Finalmente, a microbiota intestinal também pode atuar através de precursores do
neurotransmissor; a microbiota intestinal pode influenciar a neurotransmissão
serotonérgica por meio da regulação da disponibilidade do precursor da
serotonina, o triptofano.
Microbioma
Intestinal e Depressão
Recentemente, uma
série de inúmeros estudos tem demonstrado que pacientes com transtorno
depressivo major, possuem uma composição alterada do microbioma intestinal em
comparação com controles sadios, embora a natureza dessas alterações em cada um
desses estudos seja diversa. É importante notar que esses estudos também têm
demonstrado que a transferência do microbioma de um individuo deprimido, para
um roedor sadio, pode induzir comportamentos similares à depressão no recipiente,
o que sugere a possibilidade de um papel causal da microbiota na fisiopatologia
da depressão, e, desta forma abrir o conceito de ser o microbioma como alvo
para um benefício da saúde mental.
Conclusões
Consideráveis
progressos têm sido alcançados na compreensão do eixo microbioma-intestino-cérebro
em modelos pré-clínicos de transtornos cerebrais humanos e no potencial de
tradução desses achados para os seres humanos. Um crescente corpo de pesquisa
tem confirmado que interações de transtornos cérebro-intestino, como por
exemplo a Síndrome do Intestino Irritável (SII), apresentam um forte componente
cerebral, e que inúmeros transtornos cerebrais tem uma faceta do trato
gastrointestinal presente nas suas manifestações ou mesmo origens. Um papel
causal do microbioma intestinal e estas interações ainda necessita ser determinado.
Este importantíssimo conhecimento, acarretará o desenvolvimento de abordagens
terapêuticas multidisciplinares em futuro próximo.
Referências
Bibliográficas
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