Prof.
Dr. Ulysses Fagundes Neto
A
renomada revista JPGN de abril de 2021, publicou um importante artigo de
autoria de Riznik P. e cols., intitulado “Clinical Presentation in Children
with Coeliac Disease in Central Europe” que a seguir passo a abordar em seus
aspectos de maior relevância.
Introdução
A Doença Celíaca
(DC) trata-se de uma enfermidade autoimune sistêmica e permanente, provocada
pelo glúten e suas prolaminas nos indivíduos geneticamente suscetíveis, e é uma
das enfermidades crônicas mais frequentes, afetando cerca de 1% da população. A
DC pode se apresentar das formas mais variadas, envolvendo o trato digestivo, com
sintomas extra intestinais e mesmo de forma assintomática. Em virtude do seu
componente genético a DC é mais comum entre membros familiares de indivíduos
afetados, e está associada com várias outras condições clínicas, incluindo
diabete melito tipo I, deficiência de IgA, tireoidite autoimune e mesmo algumas
anomalias cromossômicas, tais como as síndromes de Down, Turner ou Willians.
Os sintomas da DC
podem ser atribuídos a uma combinação de inflamação, deficiência nutricional
causada por má absorção e resposta autoimune à enzima transglutaminase
tecidual. No passado, a DC foi reconhecida como uma enfermidade da infância,
com apresentação clínica característica de diarreia com síndrome de má
absorção. Atualmente, sabe-se que a DC é uma enfermidade sistêmica que pode
ocorrer em qualquer idade e não está limitada ao trato digestivo. Manifestações
extra intestinais desta enfermidade podem afetar quase todos os órgãos,
incluindo o sistema nervoso, fígado, pele, sistema reprodutor, sistema
cardiovascular e sistema músculo esquelético, e estão frequentemente associadas
com quadro clínico e histológico mais graves. Vale enfatizar, que algumas
destas manifestações podem surgir frequentemente na infância, enquanto outras
podem aparecer na vida adulta ou em idades avançadas.
Inúmeros estudos
têm demostrado uma mudança gradual das manifestações clínicas da DC, variando
desde os historicamente clássicos sintomas de má absorção, para nos tempos
atuais, apresentar as manifestações não clássicas, oligo sintomáticas ou mesmo as
formas assintomáticas.
O objetivo do
presente estudo foi avaliar apresentação clínica da DC em crianças e
adolescentes da Europa Central (Mapa).
Métodos
O presente estudo
foi conduzido envolvendo 12 parceiros de 5 países da Europa Central, a saber:
Croácia, Alemanha, Hungria, Itália e Eslovênia os quais participaram do
projeto. Para a obtenção dos dados dos pacientes foi elaborado um questionário
específico que incluiu perguntas a respeito das manifestações clínicas da DC.
Os Gastroenterologistas Pediátricos destes países foram estimulados para o
preenchimento dos questionários a respeitos dos dados clínicos de seus
pacientes.
Foram estudados
de forma diferenciada os dados clínicos entre os pacientes menores de 3 anos,
pré-escolares (3-6 anos) e escolares (6-18 anos). Também foi avaliada a
correlação do retardo diagnóstico com a apresentação clínica e sua respectiva
abordagem diagnóstica. Diferenças regionais relativas aos parâmetros estudados
foram analisadas.
Resultados
Foram obtidos
dados de 653 crianças e adolescentes (mediana 7,2 anos; 134 crianças); 20,5% eram assintomáticas no momento da confirmação do diagnóstico (mediana 7,5 anos);
as outras crianças foram diagnosticadas com DC em virtude dos seus sinais e
sintomas (mediana 7,2 anos; 64,7% meninas). Não houve diferença significativa
na idade, no momento do diagnóstico entre as crianças sintomáticas e as assintomáticas.
A existência de
DC em outros membros da família foi observada em 24% das crianças (Tabela 1). A
ocorrência de DC em parentes de primeiro grau mostrou-se significantemente
maior no grupo de crianças assintomáticas (50% versus 12,5%; p<0,0001). As
mães foram os membros familiares mais frequentemente afetados (41,7%).
Um pouco mais de um
quarto de todas as crianças e adolescentes (177; 27,1%) pertenciam ao grupo de
alto risco para a ocorrência de DC devido à história familiar positiva, outras
comorbidades autoimunes ou mesmo outras condições clínicas. Não houve diferença
significante entre os sexos dos pacientes com DC pertencentes (n = 177; 60,4%
meninas) e não pertencentes (n= 476; 65,1% meninas) a quaisquer grupos de alto
risco (p= 0.155).
O principal
sintoma mais comum nas crianças sintomáticas (n=519) foi dor abdominal (33,3%),
o segundo sintoma mais frequente foi retardo do crescimento (13,7%), seguido
por diarreia (13,3%) e deficiência de ferro (10,2%) (Figura 1). Dentre todos os
sintomas referidos, dor abdominal foi novamente o sintoma mais comum (41,2%),
seguida de distensão abdominal (25,7%) e diarreia (24,3%).
A maioria das
crianças sintomáticas (47,6%; n=247) era poli sintomática, referindo 3 ou mais
sintomas, seguido pelas crianças mono sintomáticas (28,5%; n=148). Dentre as
crianças mono sintomáticas, os sintomas mais frequentes foram dor abdominal
(29,7%), seguida por retardo do crescimento e deficiência de ferro (16,9% e
14,2%, respectivamente. Dentre as crianças poli sintomáticas, a dor abdominal
foi o sintoma mais comum (66,4%), seguida por distensão abdominal e diarreia
(56,7% e 54,2%, respectivamente).
Também foi
realizada a comparação das apresentações clínicas entre as crianças muito
jovens, pré-escolares e escolares. Dor abdominal foi a manifestação clínica
mais frequente em ambos os grupos etários, pré-escolares (21,3%) e escolares
(31,7%). No grupo das crianças muito jovens, diarreia foi o sintoma mais
frequente (23%), seguida de retardo do crescimento (16,2%) e distensão
abdominal (14,09%). Entre as crianças pré-escolares, os segundos sintomas mais
frequentes foram deficiência de ferro e retardo do crescimento (ambos 11,08%),
e nas crianças escolares o segundo sintoma mais frequente foi o retardo do
crescimento (9,5%) seguido de diarreia (8,03%).
Entre as crianças muito jovens, (6,08%) eram assintomáticas, nas
pré-escolares (18,09%) e nas escolares (23,7%) (p <0,05). Com relação aos sintomas entre as crianças
muito jovens, pré-escolares e escolares, foi observada uma diferença
estatisticamente significante para dor abdominal (p <0,01), diarreia e
distensão abdominal (ambos p <0,05). No que diz respeito à totalidade dos sintomas,
má absorção foi significantemente mais frequente nas crianças muito jovens em
comparação com as outras (p < 0,001); por outro lado, dor abdominal
mostrou-se mais frequente nos pré-escolares e adolescentes (p <0.01). Vale
assinalar que DC assintomática foi mais frequente entre as crianças maiores
(p <0,05) (Tabela 3).
Discussão
A idade das
crianças por ocasião do diagnóstico foi 7 anos, e revelou-se ser superior a
aquela observada em décadas passadas. A maioria das crianças era do sexo
feminino, o que tem sido descrito em investigações prévias. Está bem
estabelecido que a DC é mais prevalente entre os parentes de primeiro grau de
pacientes com DC, ocorrendo em até 10% ou mesmo acima deste valor. Entretanto,
no presente estudo, a ocorrência entre os membros familiares aconteceu próximo
a 25% deles.
O sintoma mais
frequentemente detectado neste estudo foi dor abdominal, seguido de retardo do
crescimento, diarreia e deficiência de ferro. Dor abdominal mostrou-se mais
frequente nas crianças pré-escolares e escolares; por outro lado, nas crianças
mais jovens, diarreia foi detectada mais comumente do que nas crianças maiores.
A clássica tríade de sintomas da DC (diarreia crônica, retardo do crescimento e
distensão abdominal) foi observada principalmente nas crianças mais jovens, e
com o aumento da idade, os sintomas atípicos tornaram-se mais frequentes.
Vale ressaltar
que, a DC assintomática tem se tornado cada vez mais prevalente, e, estudos de
rastreamento investigando adolescentes aparentemente sadios, a DC tem sido
detectada em cerca de 1% das crianças assintomáticas, que não apresentam
história familiar de DC. No presente estudo, 1/5 das crianças investigadas relataram
ausência de sintomas e na verdade foram majoritariamente diagnosticadas por
meio de rastreamento laboratorial por pertencerem a populações de grupo de
risco.
Meus Comentários
Há
50 anos, quando iniciei meu treinamento em serviço no programa de Residência
Médica em Pediatria no Hospital São Paulo da Escola Paulista de Medicina, nosso
problema mais crucial de saúde pública na infância respondia pelo binômio
diarreia-desnutrição, responsável pela maior causa de mortalidade em crianças
menores de 5 anos de idade. Naquela ocasião, DC não fazia parte sequer do
diagnóstico diferencial daquele problema médico, tudo era diretamente atribuído
a causas das iniquidades sociais vivenciadas por parcelas significativas da
nossa população, sendo verminoses e gastrenterite infecciosa supostamente os
grandes causadores do supracitado binômio. Entretanto, quando em 1973 fui fazer
minha especialização em Gastropediatria no serviço do Dr. Horácio Toccalino, pioneiro
da Gastropediatria na América Latina, no Policlínico Alejandro Posadas, em
Buenos Aires, tive para minha surpresa logo de início das minhas atividades
clínicas, o meu primeiro contato com a DC. Tratava-se de uma criança
profundamente desnutrida, com as mesmas características daquelas crianças
desnutridas que eu havia tão frequentemente vivenciado em São Paulo, durante os
2 anos prévios (Figuras 2-3).
Figuras
2-3- As primeiras pacientes portadores de DC por mim vivenciadas no Policlínico
Alejandro Posadas, no momento do diagnóstico e após alguns meses de dieta
isenta de glúten, evidenciando total recuperação clínica e nutricional.
Ao me deparar com a figura daquela criança, a partir de então passei a ter a mais absoluta certeza de que a DC também existia entre nós. De fato, logo após meu regresso tive a oportunidade de comprovar de forma documentada com a biópsia do intestino delgado o primeiro caso da enfermidade no Brasil (Figuras 4-5).
Figuras 4-5- O nosso primeiro paciente diagnosticado como DC no momento do diagnóstico e alguns meses após a introdução da dieta isenta de glúten evidenciando total recuperação clínica e nutricional.
Após
esta primeira descrição muitos outros casos, até então rotulados como
pacientes portadores de desnutrição devido a verminose ou mesmo desnutrição por
problemas de natureza socioeconômica, vieram a ser devidamente diagnosticados
como DC. Ainda assim, continuava-se a considerar a DC como uma enfermidade rara
mesmo nas classes sociais mais abastadas (Figuras 6-7).
Figuras
6-7- Paciente da minha clínica privada no momento do diagnóstico e após a
recuperação clínica e nutricional, evidenciando o aspecto da retomada da
alegria de viver que havia sido perdida, fato muito comum nos pacientes
portadores de DC.
Por
outro lado, embora a biópsia do intestino delgado ainda seja considerada
absolutamente necessária para a confirmação diagnóstica da DC, a introdução dos
testes sorológicos de rastreamento, a partir da década de 1980, em especial o
Anticorpo Antitransglutaminase, trouxe uma enorme contribuição para identificar
quais indivíduos devem ser submetidos ao procedimento da biópsia duodenal. Além
disso, é fundamental enfatizar que estes testes passaram a ser utilizados para
o rastreamento populacional, o que veio a permitir desvendar o que se
convencionou denominar a parte submersa do “iceberg” da DC. Esta nova
ferramenta laboratorial possibilitou estabelecer as taxas de prevalência da DC
nas mais diversas comunidades, e, mais ainda, permitiu o conhecimento das formas
atípicas e mesmo as assintomáticas da DC.
Uma comprovação
insofismável de que a DC não é rara no Brasil foi estabelecida pela tese de
Mestrado do Biomédico Ricardo Palmero, que sob minha orientação, em 2007,
incluiu 3000 indivíduos candidatos voluntários a doadores de sangue. Neste
estudo realizou uma investigação com o objetivo de determinar a prevalência da
DC na cidade de São Paulo com o emprego do Anticorpo Antitransglutaminase e com
subsequente confirmação diagnóstica pela
biópsia duodenal, e que resultou positiva em 1,5% (45/3000) dos investigados (“High
prevalence of celiac disease in Brazilian blood donors volunteers based on
screening by IgA antitissue transglutaminase antibody” Palmero R.,
Fagundes-Neto, U et al. - European Journal of Gastroenterology and
Hepatology 19: 43-9, 2007). Isto posto, ficou de forma cabalmente demonstrada
que a DC não é uma enfermidade rara em nosso meio, muito ao contrário, e cuja
prevalência é similar à de outros países do mundo ocidental.
Referências Bibliográficas
1- Riznik P e cols.- JPGN 2021; 72:546-51.
2- Husby S e cols. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2020; 70:141-56.
3- Lebwohl B e cols. Lancet 2018; 391:70-81.
4- Kurppa K e cols. Lancet 2018; 2:133-43.