Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
A
revista JPGN de outubro de 2020, publicou um importante artigo de
autoria de Makosiej, R. e cols., intitulado “Dyssynergic Defecation
and Anal Sphincter Disorders in Children in High-Resolution Anorectal Manometry
Investigation” que a seguir passo a abordar seus aspectos de maior
relevância.
Introdução
A Constipação Funcional (CF) é um transtorno comum entre as crianças, estima-se
que entre 0,7% a 29,6% delas sofrem o problema. De acordo com os critérios de
Roma III, a CF é definida por duas ou menos evacuações por semana e/ou a
presença de outras dificuldades especificas para evacuar persistindo por pelo
menos 8 semanas. A patogênese da constipação não é totalmente conhecida, mas
está principalmente relacionada com a retenção fecal levando a um comportamento
intencional de retenção após uma evacuação dolorosa.
A CF
de longa duração não tratada, acarreta transtornos do assoalho pélvico e
anorretal, incluindo disfunção do músculo pubo retal. Os transtornos na
coordenação retal resultam em uma força propulsiva inadequada, espasmo anal
paradoxal ou relaxamento anal inadequado.
A
manometria é uma ferramenta diagnóstica importante na avaliação da função do
esfíncter anal, sensação retal, reflexos reto anais, e na complacência retal. A
manometria anorretal tridimensional de alta resolução (3D HRAM), envolvendo o
uso de um maior número de sensores de pressão, comparada com os dispositivos
convencionais, permite rastrear os perfis da pressão do esfíncter anal, bem
como as alterações topográficas em 3D HRAM ao longo de todo o comprimento do
canal anal. Este instrumento permite um diagnóstico mais acurado do que os
dispositivos manométricos de gerações prévias.
O objetivo
deste estudo foi avaliar a frequência e o tipo de evacuação dissinérgica,
valores da pressão na zona de alta pressão (ZAP) durante a simulação da evacuação e o efeito da função
do músculo pubo retal sobre a defecação em crianças com CF.
Pacientes
e Métodos
Foram
investigadas 131 crianças com CF com idades que variaram entre 5 e 17 anos
(média 10,2), 69 meninas e 62 meninos. Os pacientes foram extensamente
avaliados para descartar doenças orgânicas que acarretam constipação. Os
pacientes foram submetidos a exame físico, toque retal e manometria anorretal,
utilizando o dispositivo 3D HRAM. O objetivo primário do procedimento
manométrico foi determinar o centro da ZAP e a sua largura, bem como a
mensuração da pressão de repouso, a pressão sistólica máxima e a pressão
esfincteriana residual. A presença do reflexo inibidor reto anal e a
suscetibilidade da parede do canal anal a partir de um preenchimento fracionado
com ar foi também avaliado.
Os
resultados obtidos na forma de um relato sumário, bem como na forma linear e
colorimétrica, permitiram a quantificação dos transtornos observados de acordo
com 4 padrões dissinérgicos de evacuação, a saber:
Tipo
I: a pessoa consegue gerar uma forma propulsiva adequada (elevação da pressão
intrarretal >= 45mmHg) juntamente com aumento paradoxal na pressão do
esfíncter anal; TIPO II: a pessoa é incapaz de gerar uma força propulsiva
adequada, e além disso, ocorre uma contração anal paradoxal; TIPO III : a
pessoa consegue gerar uma força propulsiva adequada mas ocorre ausência do
relaxamento do esfíncter anal; TIPO IV: a pessoa é incapaz de gerar uma força
propulsiva adequada com concomitante ausência ou relaxamento inadequado dos
esfíncteres anais.
Resultados
A
aplicação dos critérios acima descritos, permitiu identificar a evacuação dissinérgica
em 106/131 (80,9%) das crianças com CF. Tipo I foi diagnosticado em 8/131
(6,1%), Tipo II em 32/106 (30,2%), Tipo III 12/131 (9,2%) e Tipo IV 54/131
(41,2%) das crianças. Em 25 (19,1%) dos pacientes não foi possível enquadrá-los
em quaisquer dos tipos considerados, e, portanto, esse grupo foi referido com
CF não dissinérgica. A análise da história clínica indicou que 5 (3,8%)
crianças haviam apresentado a primeira eliminação de mecônio após às 48h do
nascimento. A duração do uso de fralda entre 2 e 3 anos esteve presente em 14
(10,7%) crianças e acima de 3 anos em 3 (2,3%) crianças. Comportamento de
retenção foi relatado em 45 (34,4%)
crianças. Os pais relataram a ocorrência de fezes endurecidas em 128
(98,6%) das crianças, com presença de sangue nas fezes ou no papel higiênico em
36 (35,1%) crianças, e, escape fecal ocorreu em 47 (35,9%) crianças. A
comparação dos resultados obtidos com os dados da história clínica, mostrou que
o comportamento de retenção esteve presente em todas as crianças que se enquadraram
nos tipos I e III de evacuação dissinérgica.
As
pressões de repouso, residual e intrarretal no canal anal durante as fases de
teste individual e os resultados dos polos de mensuração do centro da ZAP
durante a simulação da evacuação, estão apresentados na Tabela 1.
Os valores da pressão dos polos anterior (A), esquerda (L), posterior (P) e direito (R), na linha central ZAP de acordo com os grupos etários estão mostrados na Tabela 2.
Discussão
A CF
causada por dissinergia da evacuação é um problema frequente, e ocorre em cerca
de metade dos adultos com constipação, porém em crianças a prevalência ainda não
é conhecida. Admite-se que cerca de 70% a 80% das crianças com CF apresentem dissinergia
da evacuação. Estas observações são confirmadas no presente trabalho, posto que
80,9% das crianças apresentavam dissinergia da evacuação.
A
etiologia da dissinergia da evacuação ainda é um fenômeno desconhecido, e as
crianças demonstram uma falta de habilidade para coordenar os músculos
abdominais, reto anal e do assoalho pélvico durante a evacuação. A Figura 1
exemplifica um diagrama da função do músculo do esfíncter anal, incluindo o
músculo pubo retal. A retenção fecal intencional pela criança após uma experiência
de evacuação dolorosa é considerada uma causa importante de CF. Sua
manifestação está representada por um comportamento de retenção postural, a criança
permanecendo em pé ou sentada com as pernas estendidas e rigidamente cruzadas.
No presente estudo, isto foi observado em 34,4% das crianças, todas elas com
diagnóstico de evacuação dissinérgica dos tipos I, II e III. O comportamento de
retenção foi também relatado em 37% das crianças com CF na Coreia e, em 92,3%
no Irã.
A retenção fecal e a distensão retal crônica por meio da pressão exercida sobre os músculos do assoalho pélvico influenciam o ato total da evacuação. El-Shabrawi e cols., realizaram testes de manometria de alta resolução em crianças com CF antes e após 6 meses de tratamento. Uma melhoria significativa em todos os parâmetros de sensação retal após o tratamento foi observada. Tudo indica que o desaparecimento da distensão retal leva a uma gradual restauração da sensação normal.
A
manometria de alta resolução possibilita o diagnóstico preciso do tipo de dissinergia.
A Figura 2 exemplifica os tipos de evacuação dissinérgica e as topografias de
pressão anorretal pelo dispositivo 3D HRAM durante uma simulação de
evacuação. O dispositivo 3D HRAM também
permite avaliar a distribuição da pressão em cada ponto do canal anal e mensura
os polos no centro da ZAP em todos os estágios do teste.
Em conclusão, pode-se afirmar que a evacuação dissinérgica ocorre devido a transtornos do relaxamento do aparelho esfincteriano e de uma inadequada pressão intrarretal durante a evacuação. O aumento da pressão esfincteriana nos polos lateral e posterior do canal anal, em todos os tipos de dissinergia, provavelmente pode depender de transtornos de relaxamento do músculo pubo retal durante a evacuação.
Meus Comentários
A
Constipação Funcional é um estorvo crônico que afeta não somente a criança
portadora do problema como também seus familiares, porque a queixa provoca
muita angústia, preocupação e dúvidas quanto ao prognóstico do problema. A CF também
aflige o médico pois já se sabe de antemão que o profissional vai lidar com uma
queixa de difícil solução, muito embora, sem riscos para a vida do paciente,
mas sim para sua qualidade de vida, que se vê fortemente afetada. Este excelente
trabalho traz novos importantes conhecimentos a respeito da patogênese do
problema, evidenciando que podem estar presentes diferentes mecanismos
envolvidos na gênese da constipação, por meio da utilização de um dispositivo
de avaliação manométrica tridimensional ano-retal.
Referências
Bibliográficas
1- Makosiej R e cols. JPGN 2020;71:484-90
2- Rao SS e cols. Neurogastroeenterol Motil 2016;22:423-35
3- El-Shabrawi M e cols. Gastroenterol mRev 2018;13:305-12
4- Chang SH e cols J KIorean Med Sci 2013;28:1356-61
5- Dehghani SM e cols. Middle East J Dig Dis 2015;7:31-5