Prof
Dr Ulysses Fagundes Neto
O
número de maio de 2020 da tradicional revista Gastroenterology, traz um
artigo altamente impactante intitulado “Evidence for Gastrointestinal Infection
of SARS-CoV-2” de autoria de Fei Xiao e cols., que abaixo passo a
resumir.
Introdução
Recentemente
foi publicado pela revista New England Journal of Medicine (2), o relato
de um caso a respeito da detecção na amostra de fezes do RNA do SARS-CoV-2, e que
traz à luz a possibilidade de a transmissão da infecção gastrointestinal ocorrer
pela via fecal-oral. Foi comprovado que o SARS-CoV-2 utiliza a enzima de
conversão da angiotensina (ECA)2 como um receptor para a penetração viral. O
RNA mensageiro do ECA2 encontra-se altamente representado e estabilizado pelo
transportador do aminoácido neutro BoAT1 no sistema gastrointestinal, que
funciona como um provedor de pré requisito para a infecção do SARS-CoV-2. Com a
intenção de investigar com maiores detalhes o significado clínico do RNA do SARS-CoV-2
nas fezes, os autores examinaram o RNA viral nas fezes de 71 pacientes com
infecção por SARS-CoV-2 durante suas hospitalizações. O RNA viral e a proteína
do núcleo do capsídeo viral foram examinados nos tecidos de um dos pacientes.
Métodos
A
partir de 01 a 14 de fevereiro de 2020, amostras clínicas,
incluindo soro e swabs orofaríngeos e nasofaringeos, urina, fezes e
tecidos de 73 pacientes hospitalizados, infectados com SARS-CoV-2, foram obtidos
de acordo com as guias de conduta determinados pela “ China Disease Control and
Prevention” e testados para o RNA do SARS-CoV-2 utilizando o padrão estabelecido
pelo “Chinese Center for Disease Control and Prevention” para o ensaio quantitativo
da reação de polimerase em cadeia. Amostras teciduais do esôfago, estômago,
duodeno e reto foram obtidas de um paciente por meio da endoscopia digestiva. A coloração histológica bem como o receptor
viral ECA2 e a coloração do núcleo do capsídeo viral foram realizadas de acordo
com os métodos tradicionais. As imagens de coloração fluorescente foram obtidas
utilizando-se um microscópio confocal de varredura a laser e que estão demonstradas
na Figura 1.
Figura
1-
Imagens histológicas com coloração pela imunofluorescência dos tecidos
gastrointestinais. São mostradas imagens do esôfago, estômago, duodeno e reto. A
barra da escala das imagens histológicas representa 100 u m e a barra da escala das imagens de
imunofluorescência representam 20 u m.
Resultados
Neste
período de estudo entre os 73 pacientes hospitalizados com infecção pelo SARS-CoV-2,
39 (53,42%), incluindo 25 homens e 14 mulheres, testaram positivo para o RNA do
SARS-CoV-2 nas fezes. As idades dos pacientes que apresentaram resultados
positivos nas fezes para o RNA do SARS-CoV-2 variaram de 10 meses a 78 anos. A
duração da positividade nas fezes desses pacientes variou de 1 a 12 dias. Vale
ressaltar que 17 (23,29%) pacientes continuaram a ter resultados positivos nas
fezes, após terem negativado os resultados das amostras respiratórias. A endoscopia
digestiva realizada em um paciente não evidenciou, pela coloração da
hematoxilina-eosina, alterações significativas na mucosa epitelial do esôfago,
estômago, duodeno e reto. Infiltrado linfocitário ocasional foi observado no
epitélio escamoso esofágico. Na lâmina própria do duodeno e reto foram observadas
intensa infiltração de plasmócitos e linfócitos associadas a edema
intersticial.
É
importante salientar que houve a caracterização positiva do receptor viral ECA2
no citoplasma das células epiteliais gastrointestinais. O ECA2 raramente se
expressou no epitélio esofágico, porém, mostrou-se abundantemente presente nos
cílios do epitélio glandular. A coloração da proteína do núcleo do capsídeo
viral foi visualizada no citoplasma das células epiteliais glandulares do estômago,
duodeno e reto, mas não no epitélio esofágico.
Discussão
Este
artigo proporciona franca evidência da infecção gastrointestinal causada pelo
SARS-CoV-2 e sua possível via de transmissão fecal-oral. Considerando-se que os
vírus se disseminam de células infectadas a células não infectadas, as células
alvo vírus-específicas ou órgãos são determinantes como vias de transmissão
viral. O receptor responsável pela mediação da entrada do vírus na célula do
hospedeiro é o primeiro passo na infecção viral. Os dados da imunofluorescência
demostraram que a proteína ECA2, a qual foi comprovada ser um receptor celular
para SARS-CoV-2, está altamente expressa nas células glandulares do estômago,
duodeno e reto corroborando a entrada do SARS-CoV-2 no interior das células dos
hospedeiros. A coloração do ECA2 foi raramente vista na mucosa esofágica,
provavelmente porque o epitélio esofágico é majoritariamente composto por
células epiteliais escamosas, que apresentam uma menor expressão para o ECA2 do
que as células epiteliais glandulares. A detecção do RNA do SARS-CoV-2 e a
coloração intracelular do núcleo do capsídeo proteico viral nos epitélios gástrico,
duodenal e retal, demostram que o SARS-CoV-2 infecta essas células epiteliais
glandulares gastrointestinais. Embora o
RNA viral tenha sido também detectado no tecido mucoso esofágico, a ausência da
coloração do núcleo proteico do capsídeo viral na mucosa esofágica indica a
baixa carga de infecção viral da mucosa esofágica.
Após
a penetração viral, vírus RNA-específico e proteínas são sintetizadas no
citoplasma para a reprodução de novos virions, os quais podem ser liberados
para o trato gastrointestinal. A contínua detecção positiva do RNA viral nas
fezes sugere que os virions infeciosos são secretados pelas células
gastrointestinais infectadas pelo vírus. Recentemente, os presentes autores,
assim como outros, isolaram o SARS-CoV-2 das fezes confirmando a liberação de
virions infecciosos para o trato gastrointestinal. Desta forma, vale ressaltar
que a transmissão fecal-oral poderia ser uma via adicional para a dispersão
viral. Portanto, a prevenção da transmissão fecal-oral deve ser levada em
consideração para o controle da propagação do vírus.
Os
resultados do presente estudo, enfatizam a importância clínica de testar o RNA
viral nas fezes pela técnica do PCR, porque os virions infecciosos liberados no
trato gastrointestinal podem ser monitorados por este teste. De acordo com as atuais guias de conduta
chinesas para a alta hospitalar dos pacientes, por medidas de precaução contra
a transmissão do SARS-CoV-2, é necessário que os pacientes tenham realizado
pelo menos dois testes respiratórios sequenciais negativos coletados com uma
diferença de pelo menos 24 horas entre eles. Entretanto, como em mais de 20%
dos pacientes com SARS-CoV-2 foi observado que o resultado do teste do RNA
viral permaneceu positivo nas fezes dos pacientes, mesmo após os resultados
para o RNA viral no trato respiratório tivessem se tornado negativos, este fato
indica que a infecção viral gastrointestinal, e sua potencial transmissão fecal-oral,
pode perdurar mesmo após o desaparecimento viral do trato respiratório. Por
esta razão, recomenda-se fortemente a realização do teste fecal de forma
rotineira nos pacientes com SARS-CoV-2, e que precauções quanto a
transmissibilidade do vírus, nos pacientes hospitalizados, seja continuada no
caso de os testes fecais resultarem positivos.
Meus
Comentários
A
incidência de manifestações clínicas menos comuns, tais como, diarreia, vômitos
e desconforto abdominal, antes de ocorrerem as típicas manifestações
respiratórias, têm sido descritas, as quais variam significativamente entre as
diferentes populações estudadas, em especial no período inicial da instalação
da infecção.
A
despeito do comprometimento das vias respiratórias, já sobejamente conhecido,
este trabalho chama a atenção para mais um aspecto de enorme importância, qual
seja não somente a presença do RNA viral ao longo do trato digestivo, mas
principalmente, a possibilidade de haver a transmissão do vírus pela via
fecal-oral.
Esta
nova evidência vem a trazer uma grande preocupação para as nossas comunidades
desprovidas de saneamento básico, as quais abrangem cerca de 50% delas no nosso
país, posto que a transmissão fecal-oral vem a se constituir em mais uma via de propagação do vírus, e
que poderá ter consequências catastróficas para as parcelas socialmente
vulneráveis da nossa população.
Referências
Bibliográficas
1.
Fei Xiao e cols. Gastroenterology 2020;
158:1831-33.
2.
Holshue ML e cols. N Engl J Med
2020;382:929-36.
3.
Zhuo P e cols. Nature 2020; 579:270-73.
4.
Yan R e cols. Science 2020; 367:1444-48.