Prof.
Dr Ulysses Fagundes Neto
O
número de agosto de 2019 da Revista Gastroenterology apresenta uma
publicação de Renata Auricchio e colaboradores, intitulada: “Progression
of Celiac Disease in children with antibodies against tissue transglutaminase
and normal duodenal architecture”, cujo resumo abaixo encontra-se
transcrito.
Introdução
A
Doença Celíaca (DC) é uma enfermidade sistêmica autoimune provocada pelo glúten
e suas prolaminas similares nos indivíduos geneticamente susceptíveis,
caracterizada pela presença de uma combinação variável de manifestações
clínicas, associada a anticorpos específicos, haplotipos HLA-DQ2 e/ou DQ8, e
que se traduz por uma enteropatia com atrofia vilositária. A intensidade da lesão intestinal pode variar
desde atrofia vilositária total que é típica dos quadros mais marcantes, a
alterações histológicas de menor monta ou mesmo ausentes. Na verdade, o termo Doença
Celíaca Potencial (DCP) foi criado para identificar um subgrupo de
pacientes caracterizado pela presença do anticorpo anti-transglutaminase (ATG)
sérico, porém, com morfologia intestinal normal. Os pacientes com DCP
podem ser assintomáticos e podem ou não evoluir para atrofia vilositária
total. Por esta razão, o manejo clínico
destes pacientes é discutível. No que diz respeito aos pacientes portadores de DCP
sintomáticos, a comunidade científica manifesta-se propensa a propor um ensaio
terapêutico com uma dieta isenta de glúten. Não obstante, recentemente foi
demonstrado que apenas aproximadamente metade desses pacientes, na realidade,
apresentam uma melhoria clínica. Por outro lado, o manejo clínico dos pacientes
assintomáticos, resulta ser mais complexo, posto que, considera-se em geral que
a DCP poderia ser o primeiro degrau para o surgimento de uma enfermidade
florida, e, nessa circunstância, uma dieta isenta de glúten poderia vir a ser
prescrita de forma indiscriminada para todos os pacientes indistintamente.
Entretanto, em um recente estudo demonstrou-se que somente 1/3 desses pacientes
irão evoluir para atrofia vilositária em um espaço de tempo de 9 anos. Além
disso, um outro terço, deixará de produzir os autoanticorpos. Desta forma,
considerando-se os achados acima referidos, a prescrição de uma dieta isenta de
glúten de forma indiscriminada para todos os pacientes poderia representar um
tratamento abusivo. Tudo indica ser
evidente que a DCP é uma condição heterogenia, e, portanto, os pacientes
devem necessitar um manejo personalizado. Infelizmente, até o presente momento,
não há nenhum meio disponível para diferenciar, desde o início quais serão os
pacientes que irão desenvolver atrofia vilositária daqueles que não
apresentarão tal lesão. Algumas
investigações têm tentado identificar os fatores de risco envolvidos, tais como
sexo, inflamação da mucosa no momento do diagnóstico e o perfil genético do
paciente. Entretanto, esses resultados
somente podem ter um valor indicativo, e, consequentemente, não auxiliam o
clínico a respeito da escolha de prescrever ou não uma dieta isenta de glúten
para o paciente com DCP.
Objetivos
Este
artigo analisa a maior coorte de pacientes com DCP e o mais longo
seguimento clínico até então disponível, e visa fornecer um algoritmo preciso
capaz de prever, baseado em fatores de risco no momento do diagnóstico, a
probabilidade de desenvolver atrofia vilositária ao longo do tempo.
Métodos
Desenho
do Estudo
Foram
incluídas 340 crianças com idades compreendidas entre 2-18 anos, rastreadas
pelo ATG devido a suspeição de DC, baseada nos sintomas clínicos, risco
familiar, ou no diagnóstico de enfermidades associadas à DC. Os pacientes
ingressaram no estudo, após a realização da biópsia de intestino delgado, com
pelo menos dois testes consecutivos positivos para ATG, confirmados pelo
anticorpo Antiendomisio positivo e dosagem de IgA normal, e arquitetura
histológica duodenal normal, em todas as cinco amostras de biópsias analisadas,
e, positivos para o complexo genético HLA-DQ2 e/ou DQ8.
Todas
as crianças cujos sintomas eram sugestivos de DC, foram imediatamente
submetidas a uma dieta isenta de glúten. Todos os pacientes assintomáticos
remanescentes mantiveram-se recebendo uma dieta contendo glúten. A cada 6 meses
todos os pacientes foram avaliados a respeito das condições clínicas e dos
anticorpos, e a cada 2 anos foi realizada uma nova biópsia duodenal, sempre que
não houvesse a ocorrência de sintomas antes deste período (Figura 1).
Resultados
Pacientes
Durante
um período médio de seguimento de 60 meses (mínimo de 18 meses e máximo de 12
anos), 42 (15%) das 280 crianças desenvolveram atrofia vilositária durante a
avaliação histológica bienal e 89 (32%) deixaram de produzir anticorpos: entres
estes últimos, nenhum deles que realizou biópsia do intestino delgado
desenvolveu atrofia vilositária. No geral, 59% (166/280) permaneceram como DCP
aos 12 anos de seguimento (Figuras 2 e 3).
Figura
2A- Biópsia de intestino delgado revelando atrofia vilositária total e
hiperplasia das criptas.
Figura
3A- Critérios de Marsh para o diagnóstico de DC.
Durante
todo o período do estudo ocorreu o surgimento de dois agrupamentos de eventos no
caso das crianças que desenvolveram atrofia vilositária, a saber: o primeiro
deles entre 24/48 meses e o segundo em um intervalo de tempo de 96 /120 meses. Após
12 anos de seguimento a incidência acumulada de atrofia vilositária foi 58% em
meninos e 39% em meninas, 43% no global. Na análise multivariada os fatores
basais que mais fortemente se mostraram associados com o desenvolvimento de
atrofia vilositária, foram os números dos linfócitos intraepiteliais gama/delta,
seguidos pela idade e a presença homozigótica para o complexo genético
HLA-DQB1*02. Na análise discriminatória esses fatores basais identificaram 80%
das crianças que desenvolveram atrofia vilositária (Figura 4).
Conclusões
Esse
estudo confirmou que a DCP é uma condição extremamente heterogenia, e
não é necessariamente o primeiro passo para o surgimento de uma enfermidade
florida; desse modo, uma dieta isenta de glúten não deve ser prescrita
indistintamente para todos os pacientes que se enquadram nessa categoria
clínica. Aspectos individuais, tais como: idade, perfil genético, infiltração
da mucosa e inflamação no momento do diagnóstico, podem auxiliar na
diferenciação de um sub-grupo de pacientes que poderá desenvolver atrofia
vilositária ao longo do tempo. Vale
ressaltar que nesse estudo de longa duração envolvendo 280 crianças com
suspeita de DC (baseando-se no anticorpo anti-transglutaminase e anti-endomisio)
recebendo dietas contendo glúten, a incidência cumulativa para progressão de
atrofia vilositária foi de 43% durante o período de 12 anos. Esse estudo
permitiu identificar fatores que podem ser utilizados para apontar as crianças
que apresentam maior risco de desenvolver atrofia vilositária. Esta abordagem pode ser utilizada para
determinar se crianças com suspeita de DC devem imediatamente iniciar uma dieta
isenta de glúten ou serem rigorosamente monitoradas recebendo uma dieta normal.
Meus
Comentários
Cada
vez mais frequentemente o clínico que cuida de pacientes com a suspeita de
apresentar DC vê-se envolvido no dilema do diagnóstico e do tratamento do
paciente portador de DCP. Como conduzir estes casos? Poderemos prever
quais pacientes irão evoluir para o surgimento florido da enfermidade no caso
de serem mantidos em uma dieta contendo glúten? Correremos o risco de
realizarmos sub-diagnóstico ou sobre-diagnóstico de DC nestes pacientes? Todos
estes aspectos intrigantes que dizem respeito à DC são tratados neste artigo na
tentativa de se buscar uma resposta para estas questões.
O
sub-diagnóstico é um problema globalmente bem conhecido, e alguns fatores podem
ser identificados, tais como, a ausência ou a presença de mínimos sintomas, a
negligência em se testar grupos de alto risco, interpretação equivocada dos
testes sorológicos, a obtenção inapropriada no número de amostras da biópsia
duodenal, e, por fim, a interpretação equivocada das biópsias realizadas.
Por
outro lado, o sobre-diagnóstico irá incriminar pacientes como supostamente
portadores da DC, quando na realidade este diagnóstico não é verdadeiro. Como
consequência deste equívoco diagnóstico, este grupo de indivíduos será
submetido desnecessariamente a uma dieta isenta de glúten de forma permanente
ao longo de toda a vida, o que inevitavelmente irá afetar sua qualidade de
vida.
Considerando-se
todos estes aspectos relevantes a respeito da DC o presente artigo traz
informações extremamente importantes na abordagem desta enfermidade, que, ao
contrário do que se pensava em tempos não muito remotos, não é rara no mundo
ocidental, e cuja incidência é de pelo menos 1:100 indivíduos.
Referências
Bibliográficas
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Auricchio R e, cols. Gastroenterology 2019;
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2-
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Imperatore N e cols. Dig Liver Dis 2017;
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Werkstetter KJ e cols. Gastroenterology 2017;
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