Prof.
Dr. Ulysses Fagundes Neto
Introdução
A
revista Gastroenterology em seu exemplar de setembro de 2019, publicou
as recomendações oficiais da American Gastroenterology Association (AGA)
a respeito de um protocolo de avaliação laboratorial da diarreia funcional e da Síndrome
do Intestino Irritável (SII-D) com predominância de diarreia. O foco deste protocolo
tem por objetivo auxiliar os clínicos na escolha mais apropriada dos testes
laboratoriais com o propósito de excluir outras hipóteses diagnósticas quando a
suspeita principal, trata-se de diarreia funcional ou a SII-D. Estas
orientações se aplicam na avaliação de pacientes imunologicamente competentes
portadores de diarreia aquosa com pelo menos quatro semanas de duração. Estas
orientações, portanto, visam excluir aqueles pacientes que apresentam diarreia
sanguinolenta, diarreia com sinais de má absorção de gorduras, manifestações
clínicas com sinais de alarme, tais como, parada do ritmo do crescimento, perda
de peso, anemia e hipoalbuminemia, aqueles pacientes com história familiar de doença
inflamatória intestinal, doença celíaca e aqueles que tenham viajado para
regiões especificamente reconhecidas pela elevada prevalência de microrganismos
enteropatogênicos (Tabelas 1 e 2).
Recomendações
1- Calprotectina
e Lactoferrina fecal: esses testes têm sido propostos como
marcadores para condições inflamatórias, tais como Doença Inflamatória
Intestinal (DII). Inúmeros estudos têm utilizado a calprotectina fecal com
diferentes limiares de valores normais para identificar pacientes com DII.
Baseando-se em uma revisão dos dados disponíveis, tudo indica que o uso da
calprotectina fecal com um limiar de 50ug/g oferece o melhor desempenho. Dentre
os estudos que utilizam esse limiar, o conjunto da sensibilidade para DII foi
de 0,81 e o conjunto da especificidade foi de 0,87. O risco de viés e a
imprecisão estatística influenciaram a decisão para considerar o uso da
calprotectina fecal como uma evidência de baixa qualidade, ou seja, a confiança
desta estimativa é limitada. Em outras palavras, o verdadeiro efeito pode ser
substancialmente diferente do que a eficácia estimada.
Da mesma maneira, a
lactoferrina fecal tem sido estudada como um marcador para DII. Utilizando-se
os dados dos estudos disponíveis, levando-se em consideração os limiares dos
valores normais entre 4,0 a 7,25ug/g o conjunto da sensibilidade para DII foi 0,79
e o conjunto da especificidade 0,93. O risco de viés, a significativa
heterogeneidade, e a imprecisão estatística influenciaram a determinação da decisão
para considerar o uso da lactoferrina fecal como uma evidência de baixa
qualidade, ou seja, a confiança desta estimativa é limitada. Em outras
palavras, o verdadeiro efeito pode ser substancialmente diferente do que a
eficácia estimada.
A baixa qualidade das
evidências para apoiar o uso destes testes é composta pela pequena probabilidade
de que um teste positivo deveria indicar o início de uma avaliação
confirmatória posterior, levando a um diagnóstico mais precoce de DII, comparado
aos 10% de probabilidade de que indivíduos não portadores de DII, poderiam ser
desnecessariamente expostos a testes confirmatórios mais detalhados.
2- Hemossedimentação
e/ou Proteína C Reativa: nos pacientes portadores de diarreia
crônica a AGA se manifesta contra o uso desses marcadores como rastreadores
para DII. Ambos os testes têm sido avaliados em populações com diarreia para
identificar pacientes com DII. Nos estudos utilizando-se o valor de 5-6mg/l
como limiar para o nível da PCR, o conjunto da sensibilidade foi de 0,73 e o
conjunto da especificidade foi de 0,78. Estudos similares utilizando o limiar
de valores de 10-15mm/h para hemossedimentação resultaram em estimativas baixas
para a acurácia diagnóstica da DII. Entretanto, naquelas situações em que os
testes fecais de lactoferrina ou calprotectina, não se encontraram disponíveis,
o uso da PCR deve ser considerado, por ser uma opção razoável para o
rastreamento da DII.
3- Teste
para Giardia: de uma maneira geral a infestação por Giardia
é uma causa frequente de diarreia aquosa que pode ser prontamente tratada.
Teste diagnósticos modernos para Giardia apresentam características de bom
desempenho, sendo que vários estudos têm demonstrado sensibilidade e
especificidade acima de 95%. Os testes melhor avaliados utilizam tanto a
detecção dos antígenos da Giardia como a reação da polimerase em cadeia.
Considerando-se que os tratamentos para Giardia são extremamente
eficazes esses testes devem ser utilizados para a avaliação da diarreia crônica
líquida.
4- Pesquisa
de parasitas nas fezes: naqueles pacientes que apresentam diarreia
crônica e que não referem viagens recentes ou imigração para áreas de alto
risco, a AGA sugere que não se faça estudo parasitológico fecal.
5- Teste
para Doença Celíaca: aqueles pacientes que apresentam diarreia
crônica, a AGA recomenda fortemente que se realizem testes para pesquisa de
Doença Celíaca (DC) por meio do anticorpo antitransglutaminase IgA. A DC é uma
importante causa de diarreia crônica e também de outras manifestações clínicas.
Naqueles pacientes que apresentam diarreia crônica e que não sofrem de
deficiência de IgA, a determinação do anticorpo antitransglutaminase IgA,
representa uma estratégia altamente eficiente na determinação da existência da
DC. Entretanto, apesar da alta especificidade deste teste, acima de 90%, a
realização da biópsia duodenal para confirmar a DC faz-se necessária. É
importante enfatizar, que a prescrição de uma dieta isenta de glúten só deve
ser proposta após a confirmação da DC por meio da biópsia duodenal.
Resumo
Estas recomendações práticas para avaliação da diarreia
funcional e da SII-D com intuito de excluir outros diagnósticos, foram
propostos para reduzir as diversidades de conduta na prática clínica, e, ao
mesmo tempo, promover cuidados de alta qualidade neste grupamento populacional.
As presentes evidências apoiam o emprego da calprotectina fecal e da lactoferrina
fecal, a pesquisa fecal de Giardia nos pacientes que apresentam diarreia
crônica. O painel se mostra contrário ao uso de testes sanguíneos como o PCR e a
hemossedimentação para rastrear a DII. Nossa evidência recomenda fortemente a
pesquisa da DC por meio do anticorpo antitransglutaminase IgA. Uma ferramenta
para apoiar a decisão clínica está incluída na figura abaixo para guiar a
avaliação dos pacientes com diarreia liquida crônica (Figura 1 e Tabela 3).
Meus comentários
A SII trata-se de um transtorno
digestivo funcional, e, segundo os critérios de Roma IV, pode se manifestar
clinicamente por 3 formas distintas, a saber: diarreia, constipação e mista
(diarreia alternada com constipação). Tendo em vista a inexistência de qualquer
teste laboratorial que possibilite estabelecer o diagnóstico de certeza, este diagnóstico
acaba sendo estabelecido por exclusão.
Historicamente a primeira descrição da SII-D
foi feita por Murray Davidson, na década de 1960, nos Estados Unidos, sob a
denominação de Diarreia Crônica Inespecífica. Posteriormente, esta entidade
clínica foi confirmada por Horácio Toccalino, na década de 1970, na Argentina,
sob a denominação de Diarreia Fermentativa. No nosso meio tive a primazia de
descrever a SII-D, na década de 1980 (Fagundes Neto U e cols – Síndrome
do colon irritável e diarreia na infância: diagnóstico e evolução - Jornal de
Pediatria 58;366-70,1985), avaliando um grupo de crianças portadoras de
diarreia crônica, cuja investigação laboratorial revelou-se normal para os
testes de avaliação da função digestivo-absortiva disponíveis à época. Um dado
clínico que despertou a atenção foi o fato de os pacientes não apresentarem
qualquer agravo do estado nutricional para peso e estatura, a despeito da
queixa de diarreia crônica, informações que analisadas em conjunto excluíam anormalidades
nos processos digestivo-absortivos.
Como é do conhecimento geral a diarreia
crônica apresenta um amplo espectro de diagnóstico diferencial envolvendo
inúmeras enfermidades que são devidas a lesões orgânicas, a saber: infecções,
doença celíaca, intolerância à lactose, intolerância à frutose, doença
inflamatória intestinal, síndrome do sobrecrescimento bacteriano no intestino
delgado (sigla em inglês SIBO – small intestinal bacterial overgrowth) (Figura
2), colite microscópica entre outras. Levando-se em consideração que estas
enfermidades orgânicas em algumas circunstâncias podem apresentar manifestações
clínicas que venham se sobrepor à SII-D, torna-se crucial a realização
de uma abordagem clínico-laboratorial para que elas possam ser descartadas, e,
desta forma, permitir, por exclusão, selar o diagnóstico da SII-D com
ampla margem de segurança.
Figura 2- Teste de sobrecarga com
lactulose evidenciando pico precoce de elevação do Hidrogênio no ar expirado, o que caracteriza a SIBO.
Vale a pena ressaltar que além dos
testes diagnósticos referidos no presente artigo do protocolo da AGA, saliento
a necessidade de serem realizados também outros testes de investigação não
invasivos. Neste sentido refiro-me aos testes do Hidrogênio no ar expirado
com sobrecargas de lactose, frutose e lactulose (investigação de SIBO). A título
de informação, em 2013 publicamos na revista Arquivos de Gastroenterologia
50;226-30 o artigo intitulado ”Fructose malabsorption in children with
functional digestive disorders” cujos autores são: Lozinsky AC, Boé C, Palmero
R e Fagundes-Neto U. Foram estudados 43 pacientes, de forma consecutiva, de
ambos os sexos com idades que variaram de 3 meses a 16 anos, mediana 2,6 anos,
que apresentavam queixa de transtornos gastrointestinais e/ou nutricionais.
Deste grupo, 16 pacientes foram diagnosticados portadores da SII-D, e o
teste do Hidrogênio no ar expirado com sobrecarga de frutose mostrou-se
alterado em 7 (22,8%) deles (Figuras 3-4 e 5).
Figura 5- Menina portadora de
intolerância à frutose com distensão abdominal após ingestão de grande quantidade
de frutose e em condições normais.
Recentemente, 2 biomarcadores
tornaram-se potencialmente viáveis, e, ao que tudo indica, poderão vir a ser de
utilidade para confirmar o diagnóstico da SII-D, a saber: um anticorpo
contra uma neurotoxina (CdtB) produzida por diversas bactérias
enteropatogênicas, que interage com a proteína vinculina na mucosa intestinal, mecanismo
que é postulado para a lesão do trato gastrointestinal causado pela infecção
entérica aguda, o que poderia identificar um grupo de pacientes que apresenta a
SII-D pós-infecciosa. Estudos realizados para avaliar o desempenho dos
anticorpos anti-neurotoxina e anti-vinculina em pacientes portadores da SII-D
mostraram-se significativamente mais elevados do que os verificados em
controles sadios, mas não se diferenciaram de pacientes com doença celíaca.
Tudo indica que a especificidade destes anticorpos seja razoavelmente boa, com
elevado valor preditivo positivo, entretanto, por outro lado, a sensibilidade
foi baixa, menor que 50%. Portanto, quando o teste for positivo aumenta a
probabilidade de confiança para o diagnóstico da SII-D. Por outro lado,
o teste negativo não permite a possibilidade de descartar o diagnóstico da SII-D.
Vale ressaltar que estes testes ainda se encontram em fase de experimentação, e,
portanto, ainda não se encontram disponíveis para a serem utilizados na prática
clínica diária.
Em conclusão, devido a inexistência, até
o presente momento, da disponibilidade de biomarcadores que permitam
estabelecer o diagnóstico de certeza da SII-D, na ausência de sinais
clínicos de alarme, o diagnóstico da SII-D continua sendo de exclusão.
Referências Bibliográficas
1-
Smalley
W. e cols. - Gastroenterology 2019; 157:851-54.
2-
Carrasco-Labra A. e cols. – Gastroenterology
2019; 157:859-80.