Ulysses Fagundes Neto
Diretor Médico do
IGASTROPED
Introdução
A fermentação é um processo de
obtenção de energia que ocorre sem a presença de oxigênio (O2),
portanto, trata-se de uma via
de produção de energia denominada anaeróbia. A fermentação compreende um
conjunto de reações enzimaticamente controladas, através das quais uma molécula
orgânica é degradada em compostos mais simples, liberando energia. Nesse
processo, o aceptor final de elétrons é uma molécula orgânica. Essa via é muito
utilizada por fungos, bactérias e células musculares esqueléticas do corpo
humano, quando estas últimas estão em contração vigorosa e prolongada. A
glicose é uma das substâncias mais empregadas pelos micro-organismos como ponto
de partida da fermentação. É importante ressaltar que as reações químicas da
fermentação são equivalentes às da glicólise, as quais ocorrem no fígado do
organismo humano. A desmontagem da glicose é parcial e são produzidos resíduos
de tamanho molecular maior que aqueles gerados na respiração aeróbia e o
rendimento final da fermentação em produção de Adenosina Trifosfato (ATP) é
baixo.
Na glicólise, cada molécula de glicose é desdobrada em 2 moléculas de
ácido pirúvico, com liberação de hidrogênio e energia, por meio de várias
reações químicas.
O hidrogênio combina-se com moléculas transportadoras de hidrogênio (NAD), formando NADH + H+, ou seja, NADH2 (Figura 1).
Figura 1- Processo da glicólise
No caso das células musculares estriadas, a fermentação ocorre no
citosol e inicia-se com a glicólise, isto é, a quebra de glicose em
duas moléculas de piruvato. Percebe-se, portanto, que inicialmente esse
processo é semelhante à respiração celular. O piruvato recebe
elétrons H+ provenientes da enzima aceptora de hidrogênio (NADH) e transforma-se em
ácido láctico, que posteriormente é eliminado pela célula. Quando o ácido pirúvico
é transformado em ácido láctico, dizemos que ocorreu uma fermentação láctica. A
fermentação láctica é comum em células musculares quando submetidas a um esforço
intenso e prolongado.
O piruvato pode também se transformar em álcool e CO2, que também são posteriormente eliminados. A
substância a ser produzida depende do organismo em que o processo ocorre, mas quando se transforma em
álcool, a fermentação é chamada de alcoólica.
Tanto na fermentação alcoólica quanto na láctica o NADH doa seus
elétrons e é convertido em NAD+ (Figura 2).
Figura 2- Esquema que ilustra o processo das
fermentações láctica e alcoólica a partir da glicose.
Diferentemente do ser humano, na indústria alimentícia a fermentação láctica
é realizada pela utilização de bactérias, protozoários e fungos, para a
produção de iogurte, coalhada e queijos. No caso da fermentação alcoólica, esta
é usualmente realizada por leveduras e bactérias, sendo bastante explorada
economicamente pela indústria, principalmente para a fabricação de alimentos
como o pão, bolos e bebidas, tais como a cerveja, o vinho e os destilados.
É importante enfatizar que o rendimento da fermentação é bastante
pequeno quando comparado ao da respiração aeróbica (Figura 3).
Figura 3- Representação esquemática da
respiração aeróbica.
Enquanto que no processo de fermentação são obtidas
apenas 2 moléculas de ATP, na respiração aeróbica, há um saldo final muito
maior, de 38 ATP (Figura 4).
Figura 4- Quadro comparativo entre a produção de energia na reação de
fermentação e na respiração aeróbica.
Curiosidade: Quando o ser humano está praticando
exercícios físicos extenuantes, frequentemente pode sentir dor muscular, que também
é chamada de fadiga muscular. Isso ocorre porque as células musculares não
recebem a quantidade necessária de oxigênio para realizar a respiração aeróbica
e, então, passam a quebrar glicose de forma anaeróbia, produzindo ácido
láctico. O acúmulo desse ácido faz com que as pessoas sintam dor muscular
(Figura 5).
Figura 5- Representação esquemática da reação
de fermentação láctica no músculo estriado submetido a grande esforço e
exaustão.
A fermentação láctica nas células musculares é um processo que ocorre de
forma alternativa, frente a situações em que o organismo não realiza respiração
aeróbica. Este processo é considerado um artifício metabólico de curto prazo, que
é ativado quando o organismo é submetido a um intenso esforço físico em
condições de baixa oxigenação muscular.
De acordo com Pasteur, tanto a velocidade da fermentação quanto a quantidade total de glicose por ela consumida eram muitas vezes maiores em condições anaeróbicas do que sob condições aeróbicas. O chamado efeito Pasteur ocorre porque o rendimento em ATP da glicólise, sob condições anaeróbicas (2 ATP por molécula de glicose) é muito menor do que a obtida na oxidação completa da glicose até o CO2 e H2O, sob condições aeróbicas (36 a 38 ATP por molécula de glicose). Portanto, para produzir a mesma quantidade de ATP, é necessário consumir perto de 18 vezes mais glicose em condições anaeróbicas do que em condições aeróbicas.
Vale ressaltar que a desvantagem anaeróbia em relação à aeróbia,
consiste não somente na quantidade de ATP, mas aos efeitos fisiológicos causados.
Em decorrência a extensos períodos de atividade fermentativa (exercícios
físicos prolongados), as células musculares passam a acumular uma concentração
muito elevada de ácido láctico, prejudicando o funcionamento da célula.
Entre os efeitos provocados em defesa do metabolismo, o organismo passa a sentir dor e fadiga muscular, causada por uma contração arrítmica (gradativa ou repentina) atuando como sinal de alerta, induzindo o fim da atividade para o repouso e o restabelecimento da capacidade fisiológica do órgão (Figura 6).
Figura 6- Produção de lactato no músculo.
Isso ocorre à medida em que o excesso de ácido láctico se difunde para o fígado, onde é convertido em ácido pirúvico e posteriormente em glicose armazenada na forma de glicogênio, sendo a conversão denominada de gliconeogênese (Figura 7).
Figura 7- Esquema da gliconeogênese.
Por outro lado, no que diz respeito à fermentação
alcoólica os seres humanos têm se beneficiado deste processo há milhares de anos por
meio da utilização de leveduras para produzir pão,
cerveja e vinho, mas somente passaram a ter conhecimento da intimidade desta
reação a partir dos últimos duzentos anos.
A fermentação alcoólica, também
conhecida como fermentação do etanol, é a via anaeróbia realizada por
leveduras, na qual açúcares simples são convertidos em etanol e dióxido de
carbono (Figura 8).
Figura 8- Representação da equação de produção do etanol.
Em alguns casos a fermentação é usada para modificar um material cuja transformação
seria difícil ou muito cara, caso fossem escolhidos métodos químicos
convencionais. A fermentação é sempre iniciada por enzimas que atuam como
catalisadores naturais que provocam uma mudança química sem serem afetados por
isto.
Os produtos da fermentação têm sido usados desde a antiguidade.
Habitantes das cavernas descobriram que a carne envelhecida tem um sabor mais
agradável que a carne fresca. Vinho, cerveja, e pão são tão velhos quanto a
agricultura, e inclusive, foram encontrados pães nas pirâmides egípcias
construídas há milhares de anos (Figura 9).
Figura 9- Produção do pão.
O queijo, que envolve a fermentação do leite, é outro alimento muito
antigo e sua fabricação na China e no Japão era conhecida há milhares de anos.
O valor medicinal de produtos fermentados é conhecido desde longa data. Os
chineses usavam coalho de feijão-soja mofado para curar infecções de pele há
3.000 anos. Os nativos da América Central tratavam feridas infectadas com
fungos.
O conhecimento íntimo da química das fermentações é uma ciência nova que
ainda está em suas fases mais iniciais. É a base dos processos industriais que
convertem matérias-primas como grãos, açúcares e subprodutos industriais em
muitos produtos sintéticos diferentes. Cepas cuidadosamente selecionadas de
mofos, leveduras e bactérias são usadas para estas transformações.
As primeiras plantas industriais a utilizar a tecnologia da fermentação
foram as fábricas de cerveja. No entanto, foi somente no final do século XIX e
início do século XX que essa tecnologia passou a ser gradativamente utilizada,
tanto na indústria de bebidas e de alimentos, como na indústria química. A
indústria química, nos primórdios do século XX, principiou a produção de
solventes orgânicos. No início da I Guerra Mundial as necessidades de produzir acetona,
composto orgânico importante para a produção de explosivos, estimularam
substancialmente a pesquisa no potencial da tecnologia de fermentação.
Em 1923, Pfizer inaugurou a primeira fábrica para a produção de ácido
cítrico por via fermentativa. O processo envolvia a fermentação utilizando o
fungo Aspergillus niger, por meio do
qual o açúcar era transformado em ácido cítrico.
Foi em uma descoberta casual que um funcionário de um
mercado encontrou um melão embolorado por uma linhagem de Penicillium, a qual podia prosperar quando cultivada em tanques
fundos com aeração, e que produzia duzentas vezes mais penicilina que o bolor
de Fleming cultivado em meio sólido.
O progresso da fermentação prossegue a passadas largas. A cada ano novos
produtos são incorporados à lista de produtos derivados da fermentação. Várias
vitaminas são produzidas pelo emprego de etapas de fermentação em sua síntese (vitamina
B-2 a riboflavina, vitamina B-12 a cianocobalamina e a vitamina C o ácido
ascórbico).
Alguns dos bioprocessos mais interessantes são as desidrogenações e
hidroxilações específicas do núcleo esteróide. Essas transformações são vias
econômicas utilizadas na obtenção da cortisona, um potente agente
anti-inflamatório e seus derivados.
O ácido cítrico é uma das muitas substâncias químicas produzidas por
micro-organismos. É usado em limpadores de metal, bem como trata-se de um
preservativo de alimentos, além de ser também um agente capaz de conferir
melhor palatabilidade aos alimentos. O ácido cítrico é responsável pelo sabor
azedo das frutas cítricas. Poderia ser obtido delas, mas necessitaria muitos
milhares de frutos para produzir a mesma quantidade de ácido cítrico obtida pela
fermentação do melado com o mofo do Aspergillus
niger.
Na Tabela 1 estão listados os tipos de fermentação conhecidos.
Tabela
1- Tipos de Fermentação
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