quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Reações de Fermentação: aquilo que vale a pena saber a respeito delas (Parte 1)


Ulysses Fagundes Neto
Diretor Médico do IGASTROPED

Introdução

fermentação é um processo de obtenção de energia que ocorre sem a presença de oxigênio (O2), portanto, trata-se de uma via de produção de energia denominada anaeróbia. A fermentação compreende um conjunto de reações enzimaticamente controladas, através das quais uma molécula orgânica é degradada em compostos mais simples, liberando energia. Nesse processo, o aceptor final de elétrons é uma molécula orgânica. Essa via é muito utilizada por fungos, bactérias e células musculares esqueléticas do corpo humano, quando estas últimas estão em contração vigorosa e prolongada. A glicose é uma das substâncias mais empregadas pelos micro-organismos como ponto de partida da fermentação. É importante ressaltar que as reações químicas da fermentação são equivalentes às da glicólise, as quais ocorrem no fígado do organismo humano. A desmontagem da glicose é parcial e são produzidos resíduos de tamanho molecular maior que aqueles gerados na respiração aeróbia e o rendimento final da fermentação em produção de Adenosina Trifosfato (ATP) é baixo.

Na glicólise, cada molécula de glicose é desdobrada em 2 moléculas de ácido pirúvico, com liberação de hidrogênio e energia, por meio de várias reações químicas.

O hidrogênio combina-se com moléculas transportadoras de hidrogênio (NAD), formando NADH + H+, ou seja, NADH2 (Figura 1).

Figura 1- Processo da glicólise

No caso das células musculares estriadas, a fermentação ocorre no citosol e inicia-se com a glicólise, isto é, a quebra de glicose em duas moléculas de piruvato. Percebe-se, portanto, que inicialmente esse processo é semelhante à respiração celular. O piruvato recebe elétrons H+ provenientes da enzima aceptora de hidrogênio (NADH) e transforma-se em ácido láctico, que posteriormente é eliminado pela célula. Quando o ácido pirúvico é transformado em ácido láctico, dizemos que ocorreu uma fermentação láctica. A fermentação láctica é comum em células musculares quando submetidas a um esforço intenso e prolongado.

O piruvato pode também se transformar em álcool e CO2, que também são posteriormente eliminados. A substância a ser produzida depende do organismo em que o processo ocorre, mas quando se transforma em álcool, a fermentação é chamada de alcoólica.

Tanto na fermentação alcoólica quanto na láctica o NADH doa seus elétrons e é convertido em NAD+ (Figura 2).
Figura 2- Esquema que ilustra o processo das fermentações láctica e alcoólica a partir da glicose.

Diferentemente do ser humano, na indústria alimentícia a fermentação láctica é realizada pela utilização de bactérias, protozoários e fungos, para a produção de iogurte, coalhada e queijos. No caso da fermentação alcoólica, esta é usualmente realizada por leveduras e bactérias, sendo bastante explorada economicamente pela indústria, principalmente para a fabricação de alimentos como o pão, bolos e bebidas, tais como a cerveja, o vinho e os destilados.

É importante enfatizar que o rendimento da fermentação é bastante pequeno quando comparado ao da respiração aeróbica (Figura 3). 

Figura 3- Representação esquemática da respiração aeróbica.

Enquanto que no processo de fermentação são obtidas apenas 2 moléculas de ATP, na respiração aeróbica, há um saldo final muito maior, de 38 ATP (Figura 4).


Figura 4- Quadro comparativo entre a produção de energia na reação de fermentação e na respiração aeróbica.

Curiosidade: Quando o ser humano está praticando exercícios físicos extenuantes, frequentemente pode sentir dor muscular, que também é chamada de fadiga muscular. Isso ocorre porque as células musculares não recebem a quantidade necessária de oxigênio para realizar a respiração aeróbica e, então, passam a quebrar glicose de forma anaeróbia, produzindo ácido láctico. O acúmulo desse ácido faz com que as pessoas sintam dor muscular (Figura 5).
Figura 5- Representação esquemática da reação de fermentação láctica no músculo estriado submetido a grande esforço e exaustão.

A fermentação láctica nas células musculares é um processo que ocorre de forma alternativa, frente a situações em que o organismo não realiza respiração aeróbica. Este processo é considerado um artifício metabólico de curto prazo, que é ativado quando o organismo é submetido a um intenso esforço físico em condições de baixa oxigenação muscular. 

De acordo com Pasteur, tanto a velocidade da fermentação quanto a quantidade total de glicose por ela consumida eram muitas vezes maiores em condições anaeróbicas do que sob condições aeróbicas. O chamado efeito Pasteur ocorre porque o rendimento em ATP da glicólise, sob condições anaeróbicas (2 ATP por molécula de glicose) é muito menor do que a obtida na oxidação completa da glicose até o CO2 e H2O, sob condições aeróbicas (36 a 38 ATP por molécula de glicose). Portanto, para produzir a mesma quantidade de ATP, é necessário consumir perto de 18 vezes mais glicose em condições anaeróbicas do que em condições aeróbicas.

Vale ressaltar que a desvantagem anaeróbia em relação à aeróbia, consiste não somente na quantidade de ATP, mas aos efeitos fisiológicos causados. Em decorrência a extensos períodos de atividade fermentativa (exercícios físicos prolongados), as células musculares passam a acumular uma concentração muito elevada de ácido láctico, prejudicando o funcionamento da célula. 

Entre os efeitos provocados em defesa do metabolismo, o organismo passa a sentir dor e fadiga muscular, causada por uma contração arrítmica (gradativa ou repentina) atuando como sinal de alerta, induzindo o fim da atividade para o repouso e o restabelecimento da capacidade fisiológica do órgão (Figura 6).
Figura 6- Produção de lactato no músculo.

Isso ocorre à medida em que o excesso de ácido láctico se difunde para o fígado, onde é convertido em ácido pirúvico e posteriormente em glicose armazenada na forma de glicogênio, sendo a conversão denominada de gliconeogênese (Figura 7).


Figura 7- Esquema da gliconeogênese.

Por outro lado, no que diz respeito à fermentação alcoólica os seres humanos têm se beneficiado deste processo milhares de anos por meio da utilização de leveduras para produzir pão, cerveja e vinho, mas somente passaram a ter conhecimento da intimidade desta reação a partir dos últimos duzentos anos.
fermentação alcoólica, também conhecida como fermentação do etanol, é a via anaeróbia realizada por leveduras, na qual açúcares simples são convertidos em etanol e dióxido de carbono (Figura 8).
Figura 8- Representação da equação de produção do etanol.

Em alguns casos a fermentação é usada para modificar um material cuja transformação seria difícil ou muito cara, caso fossem escolhidos métodos químicos convencionais. A fermentação é sempre iniciada por enzimas que atuam como catalisadores naturais que provocam uma mudança química sem serem afetados por isto.
Os produtos da fermentação têm sido usados desde a antiguidade. Habitantes das cavernas descobriram que a carne envelhecida tem um sabor mais agradável que a carne fresca. Vinho, cerveja, e pão são tão velhos quanto a agricultura, e inclusive, foram encontrados pães nas pirâmides egípcias construídas há milhares de anos (Figura 9).
Figura 9- Produção do pão.
O queijo, que envolve a fermentação do leite, é outro alimento muito antigo e sua fabricação na China e no Japão era conhecida há milhares de anos. O valor medicinal de produtos fermentados é conhecido desde longa data. Os chineses usavam coalho de feijão-soja mofado para curar infecções de pele há 3.000 anos. Os nativos da América Central tratavam feridas infectadas com fungos.
O conhecimento íntimo da química das fermentações é uma ciência nova que ainda está em suas fases mais iniciais. É a base dos processos industriais que convertem matérias-primas como grãos, açúcares e subprodutos industriais em muitos produtos sintéticos diferentes. Cepas cuidadosamente selecionadas de mofos, leveduras e bactérias são usadas para estas transformações.
As primeiras plantas industriais a utilizar a tecnologia da fermentação foram as fábricas de cerveja. No entanto, foi somente no final do século XIX e início do século XX que essa tecnologia passou a ser gradativamente utilizada, tanto na indústria de bebidas e de alimentos, como na indústria química. A indústria química, nos primórdios do século XX, principiou a produção de solventes orgânicos. No início da I Guerra Mundial as necessidades de produzir acetona, composto orgânico importante para a produção de explosivos, estimularam substancialmente a pesquisa no potencial da tecnologia de fermentação.
Em 1923, Pfizer inaugurou a primeira fábrica para a produção de ácido cítrico por via fermentativa. O processo envolvia a fermentação utilizando o fungo Aspergillus niger, por meio do qual o açúcar era transformado em ácido cítrico.
Foi em uma descoberta casual que um funcionário de um mercado encontrou um melão embolorado por uma linhagem de Penicillium, a qual podia prosperar quando cultivada em tanques fundos com aeração, e que produzia duzentas vezes mais penicilina que o bolor de Fleming cultivado em meio sólido.

O progresso da fermentação prossegue a passadas largas. A cada ano novos produtos são incorporados à lista de produtos derivados da fermentação. Várias vitaminas são produzidas pelo emprego de etapas de fermentação em sua síntese (vitamina B-2 a riboflavina, vitamina B-12 a cianocobalamina e a vitamina C o ácido ascórbico).
Alguns dos bioprocessos mais interessantes são as desidrogenações e hidroxilações específicas do núcleo esteróide. Essas transformações são vias econômicas utilizadas na obtenção da cortisona, um potente agente anti-inflamatório e seus derivados.
O ácido cítrico é uma das muitas substâncias químicas produzidas por micro-organismos. É usado em limpadores de metal, bem como trata-se de um preservativo de alimentos, além de ser também um agente capaz de conferir melhor palatabilidade aos alimentos. O ácido cítrico é responsável pelo sabor azedo das frutas cítricas. Poderia ser obtido delas, mas necessitaria muitos milhares de frutos para produzir a mesma quantidade de ácido cítrico obtida pela fermentação do melado com o mofo do Aspergillus niger.
Na Tabela 1 estão listados os tipos de fermentação conhecidos.
Tabela 1- Tipos de Fermentação

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