Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo
(I-GASTROPED)
O papel desempenhado pela Genética na
Doença Celíaca
A
suscetibilidade para a ocorrência da DC
está, em parte, determinada por uma associação com um Antígeno de
Histocompatibilidade (HLA – human leukocytes antigen) dominante comum, especificamente, com o mais importante complexo de antígenos classe II de
histocompatibilidade, DQ2 e DQ8. Esses genes são codificados para
glicoproteinas que se ligam a peptídeos e formam um complexo antigênico HLA que
pode ser reconhecido pelas células T receptoras CD4+ na mucosa intestinal. O
gene DQ2 está presente em cerca de 90% dos pacientes e quando esses alelos são
homozigotos respondem pela instalação precoce da forma clássica da DC. Vale ressaltar que embora o gene
DQ2 represente a base da suscetibilidade genética da DC, eles estão presentes em cerca de 30% de toda a população. O
gene DQ8 está presente na maioria dos restantes 10% dos pacientes. Portanto,
como as moléculas de DQ2 e DQ8 respondem pela quase totalidade dos pacientes
com DC, a ausência das mesmas, nos
testes genéticos, praticamente exclui a possibilidade da existência da DC em um determinado indivíduo. Vale
ressaltar, porém, que embora DQ2 esteja presente em 30% da população geral e
que tanto DQ2 como DQ8 estejam presentes em 40% da população geral, a
auto-imunidade para DC irá surgir em
apenas cerca de 3% da população geral que possui DQ2. Desta forma as sondas
genéticas para DQ2 e DQ8 apresentam alta sensibilidade (baixas taxas de falso
negativo), mas baixa especificidade (altas taxas de falso positivo), indicando,
portanto, baixo valor preditivo positivo, mas um alto valor preditivo negativo
para a DC.
Diagnóstico
O
diagnóstico da DC usualmente é
suspeitado em um primeiro momento pela presença dos auto-anticorpos, porém,
deve sempre ser confirmado pela realização da biópsia de intestino delgado. Há
uma série de artigos disponíveis na literatura médica demonstrando que o
diagnóstico baseado em critérios clínicos levando-se em consideração apenas as
manifestações gastrointestinais mostraram-se incorretos em mais de 50% dos
casos. Exames radiológicos ou mesmo outros testes laboratoriais também são
incapazes de definir corretamente a existência ou não da atrofia vilositária.
Atualmente,
é consenso internacional que crianças maiores de 2 anos de idade (em crianças
menores as mesmas alterações histológicas também podem ser observadas em
lactentes portadores de enteropatia por alergia à proteína do leite de vaca),
que apresentam manifestações clínicas sugestivas da DC associadas a lesões morfológicas características do intestino
delgado, e que evoluem para a recuperação clínica e nutricional quando
submetidas à dieta isenta de glúten, o diagnóstico da DC pode ser considerado definitivamente correto, sem que haja
necessidade da realização de novas biópsias do intestino delgado. Além disso,
caso tenham sido demonstrados auto-anticorpos antes do diagnóstico e o consequente
desaparecimento dos mesmos, após a introdução da dieta isenta de glúten, estes
eventos reforçam ainda mais o acerto diagnóstico da DC.
As
características lesões morfológicas da mucosa do intestino delgado descritas na
DC incluem um número aumentado de
linfócitos intra-epiteliais (>30 linfócitos por 100 enterócitos), índice
mitótico dos linfócitos intra-epiteliais superior a 0,2%, diminuição na altura
das células epiteliais, com transformação cuboidal, hiperplasia das criptas,
atrofia vilositária parcial ou total, com nítida diminuição da relação
vilosidade:cripta (Figuras 24 e 25).
Figura
24- Aspecto histopatológico característico da DC. Atrofia vilositária total, transformação cuboidal do epitélio,
com hiperplasia das criptas e infiltrado intra-epitelial de linfócitos.
Figura
25- Aspecto da histologia normal da mucosa do intestino delgado, apresentando
vilosidades digitiformes, células epiteliais cilíndricas com núcleo em posição
basal e glândulas crípticas preservando a relação vilosidade/cripta 4 ou 5:1.
Presentemente,
os critérios diagnósticos de graduação das alterações morfológicas da mucosa
intestinal aceitos internacionalmente para o diagnóstico da DC são os propostos por Marsh, em 1992
(Figuras 26 e 27) (Gastroenterology 102: 330-54).
Figura
26- Representação esquemática dos critérios de Marsh para o diagnóstico da DC.
Figura
27- Graduação histológica das lesões do intestino delgado na DC.
Marsh
classificou as alterações histológicas para o diagnóstico da DC nos seguintes graus, a saber: Grau
0: estágio pré-infiltrativo (normal); Grau 1: lesão infiltrativa (aumento do
número de linfócitos intra-epiteliais); Grau 2: lesão hiperplásica (Grau 1 +
hiperplasia das criptas); Grau 3: lesão destrutiva (Grau 2 + atrofia
vilositária parcial); Grau 4: lesão hipoplásica (atrofia vilositária total com
hipoplasia críptica). A lesão Grau 3 foi modificada para ser subdividida em
Grau 3a (atrofia vilositária parcial), Grau 3b (atrofia vilositária subtotal) e
Grau 3c (atrofia vilositária total).
A
existência de lesão Marsh Grau 3 com atrofia vilositária, ou mais intensa, é
aceita como claro aspecto diagnóstico da DC.
A ocorrência de lesão Marsh Grau 2 associada à positividade de marcadores
sorológicos é altamente sugestiva da DC.
A existência da lesão histológica Marsh Grau 1 é considerada inespecífica,
porém, se essa lesão vier acompanhada de positividade dos marcadores
sorológicos deve-se considerar fortemente o diagnóstico de DC. Nesta situação deve-se realizar a tipagem HLA e se necessário
repetir a biópsia do intestino delgado, ou então, indicar o emprego da dieta
isenta de glúten e após 6 meses repetir os testes sorológicos e a biópsia do
intestino delgado.
Uma proposta de diagnóstico precoce da
Doença Celíaca: uma nova revolução desvendando ainda mais a parte não visível
desta enfermidade
É
consenso internacional que o critério diagnóstico de certeza da DC é a demonstração de atrofia
vilositária Marsh 3. Entretanto, há evidencias de que a lesão da mucosa do
intestino delgado se instala de forma gradual, e, portanto, admite-se que
enteropatias moderadas podem evoluir para atrofia vilositária total e
hiperplasia das criptas, caso a ingestão de glúten se mantenha de forma
continuada. Dados atuais sugerem que alguns pacientes que apresentam somente
enteropatias moderadas podem apresentar sintomas ou mesmo complicações clínicas
em decorrência da ingestão de glúten antes de desenvolverem atrofia vilositária
total. Este fato desperta a inevitável questão se acaso os atuais critérios diagnósticos
para caracterizar a DC ainda sejam
válidos (Figura 28).
Figura
28- Aspectos progressivos da lesão do intestino delgado na DC.
Kalle
Kurppa e colaboradores (Gastroenterology 2009; 136: 816-23), em Tampere, na
Finlândia, levando em consideração a hipótese acima considerada realizaram uma
investigação clínica controlada, de forma prospectiva e randomizada, para
avaliar o efeito da intervenção do glúten em pacientes suspeitos de sofrerem de
DC que apresentavam positividade ao
autoanticorpo anti-Endomíseo (EMA) e que à biópsia do intestino delgado
evidenciavam linfocitose, mas arquitetura vilositária normal. Foram realizadas
biópsias de intestino delgado em 70 pacientes EMA positivos, e destes, 23
apresentavam apenas enteropatia moderada (Marsh 1-2), os quais foram
aleatoriamente distribuídos para continuarem recebendo dieta contendo glúten ou
dieta isenta de glúten. Após o período de 1 ano foram repetidas as avaliações
clínicas, sorológicas e histológicas. Um grupo de 47 pacientes com lesões da mucosa
do intestino delgado compatíveis com DC
(Marsh 3) e submetidos à dieta isenta de glúten serviram como grupo controle
enfermo.
No
grupo que recebeu dieta contendo glúten (Marsh 1-2) a arquitetura da mucosa
intestinal se agravou em todos os indivíduos, e os sintomas persistiram assim
como a positividade do EMA. Em contraste, naquele grupo que recebeu dieta
isenta de glúten os sintomas desapareceram, os títulos do EMA diminuíram, e a
morfologia da mucosa intestinal se normalizou, da mesma forma que ocorreu no
grupo controle enfermo. Quando o ensaio clínico terminou todos os indivíduos
decidiram adotar uma dieta isenta de glúten.
Os
autores concluíram que os indivíduos que apresentaram EMA positivo se
beneficiaram com a adoção de uma dieta isenta de glúten, a despeito de não
apresentarem atrofia vilositária total. Baseados nos resultados dessa pesquisa
os autores propõem que os critérios diagnósticos para DC necessitam ser revistos, valorizando os resultados positivos dos
marcadores sorológicos EMA e ATTG, até então considerados “falso positivos”.
Enfatizam que a positividade dos marcadores sorológicos mesmo na ausência de
atrofia vilositária é uma indicação para a adoção de uma dieta isenta de
glúten.
Levando-se
em consideração os resultados dessa importante pesquisa, e, nos colocando na
expectativa de que essas observações sejam confirmadas em outros centros,
passaremos a admitir que a parte não visível do “iceberg” é ainda maior do que
aquela até o presente momento conhecida.
Tratamento
Atualmente,
o único tratamento disponível para a DC
é o dietético, consistindo na eliminação do trigo, centeio e cevada, de forma
permanente, da dieta do paciente.
É
fortemente recomendável que o tratamento com a dieta isenta de glúten apenas se
inicie após a confirmação diagnóstica por meio da realização da biópsia do
intestino delgado.
É de
fundamental importância o cumprimento efetivo da dieta isenta de glúten a fim
de assegurar desenvolvimento pôndero-estatural e puberal adequados, manter
adequada a densidade mineral óssea, preservar a fertilidade, reduzir o risco de
anemia ferropriva e de deficiências de outros micro-nutrientes, bem como
prevenir o surgimento de doenças malignas do trato digestivo, tal como o
linfoma do intestino delgado. Entretanto, é do conhecimento geral que, na
prática, manter a obediência restrita à dieta isenta de glúten de forma
permanente é um grande desafio para o médico e para o paciente. A transgressão
alimentar pode ser voluntária ou inadvertida. A transgressão voluntária costuma
ocorrer em todas as faixas etárias e a inadvertida ocorre devido a incorreta
inscrição dos ingredientes nos rótulos dos alimentos, ou então, à contaminação
com glúten em um determinado produto industrializado.
Vale
a pena frisar que há poucos estudos disponíveis na literatura médica a respeito
das taxas de adesão à dieta isenta de glúten. Sdepanian, Fagundes-Neto e cols. (Arquivos
de Gastroenterologia 2001; 38: 232-38) realizaram uma investigação com o
objetivo de avaliar a obediência à dieta isenta de glúten, o conhecimento
teórico acerca da DC e seu
tratamento pelos pacientes cadastrados na Associação dos Celíacos do Brasil
(ACELBRA). Foi enviado pelo correio um questionário para se determinar a
obediência da adesão à dieta isenta de glúten, do conhecimento teórico e do
tratamento da DC a 584 membros
cadastrados na ACELBRA. Foram retornados 529 (90,6%) questionários devidamente
preenchidos, os quais revelaram que 69,4% dos pacientes nunca ingerem glúten e
29,5% reconhecem que não cumprem a dieta de forma restrita. A proporção dos
pacientes que ingere glúten frequentemente ou que não faz restrição alguma é
maior entre aqueles com idade igual ou maior a 21 anos (17,7%) do que os com
idade menor (9,9%). A frequência de obediência à dieta isenta de glúten foi
maior quando o intervalo de tempo em que foi estabelecido o diagnóstico da DC foi inferior a cinco anos. Para
96,2% dos pacientes que responderam ao questionário a dieta deve ser totalmente
isenta de glúten, enquanto que para os 3,8% restantes o glúten pode ser
ingerido semanal ou mensalmente. Segundo 67,1% dos pacientes o glúten é uma
proteína, enquanto que para 10,2% é uma enzima, 5,5% um carboidrato, 0,6% uma
gordura e 16,6% responderam que não sabiam. Quanto aos cereais onde o glúten
está presente 98,7% responderam no trigo, 94,7% na cevada, 95,1% na aveia,
93,4% no centeio e 1,0% no arroz. Com relação aos possíveis substitutos dos
alimentos que contém glúten, a farinha de milho foi referida em 97,9% dos
inquéritos, o polvilho em 98,3%, a fécula de mandioca em 98,9%, e a farinha de
arroz em 97,5%. Este estudo demonstra que o esclarecimento da causa da DC e seu respectivo tratamento exercem
papel fundamental no cumprimento da dieta isenta de glúten de forma restrita.
Monitoramento dos Pacientes
Recomenda-se
que os pacientes portadores de DC
sejam monitorados por meio de visitas periódicas ao médico, para que este possa
avaliar a existência ou não de sintomas compatíveis com transgressões
dietéticas, analisar a curva de crescimento e a adesão à dieta isenta de
glúten.
Recomenda-se
também a determinação dos auto-anticorpos (ATTG ou EMA) após os primeiros 6
meses da confirmação diagnóstica pela biópsia do intestino delgado e do início
do tratamento com dieta isenta de glúten, e sucessivamente a cada ano sob
tratamento com dieta isenta de glúten. Caso a dieta esteja sendo rigorosamente
cumprida o título do auto-anticorpo deve cair abruptamente ou mesmo desaparecer.
Por outro lado, caso o título permaneça elevado associado ou não a alguma
manifestação clínica é muito provável que o paciente esteja transgredindo a
dieta isenta de glúten voluntária ou inadvertidamente. Entretanto,
recentemente, Leonard e cols. (JPGN 64:286-91, 2017) investigaram de forma
retrospectiva um grupo de pacientes portadores de DC nos quais por alguma razão foi realizada nova biópsia de
intestino delgado pelo menos após 12 meses de tratamento com dieta isenta de
glúten. Estes autores verificaram que 1 em cada 5 crianças podem apresentar
persistência da enteropatia a despeito da normalização do anticorpo
antitransglutaminase. Por esta razão sugerem que a determinação do anticorpo
antitransglutaminase não é um marcador sorológico acurado para atestar a
recuperação histológica da mucosa do intestino delgado. De qualquer forma
Leonard e cols. não propõem outra alternativa laboratorial para o monitoramento
da evolução da DC. Por esta razão, o
monitoramento deve seguir sendo realizado por meio da determinação do anticorpo
antitransglutaminase, apesar das limitações apontadas pelo trabalho de Leonard
e cols., até que algum outro marcador mais confiável esteja disponível à comunidade
médica.
CASO
CLÍNICO
ABRM,
2 anos, feminino, branca
Primeira
Consulta
Identificação:
Natural e procedente de Camanducaia – MG
Queixa
Principal: Diarreia desde 1 ano e 6 meses de idade
História:
Mãe refere que a menor evacua fezes líquidas, sem sangue ou muco, 6 vezes por
dia há 6 meses, acompanhada de dor e distensão abdominal, inapetência,
hipoatividade e com perda de 1,5 kg neste período.
Há
três meses consultou pediatra que suspeitou de DC e orientou para iniciar uso de dieta isenta de trigo. Entretanto,
apesar de ter diminuído a ingestão de glúten não fez restrição total do cereal
na dieta; sintomas desapareceram desde então, e houve recuperação do peso. Não
realizou qualquer investigação laboratorial nesta época.
Interrogatório
Complementar: há dois meses fezes pastosas 2 vezes por dia sem dor ou
dificuldade para evacuar. O hábito intestinal atual é igual ao que apresentava
antes do início do quadro de diarreia.
Alimentação:
Aleitamento
misto desde o nascimento com introdução de cereais contendo glúten aos 4 meses.
Antecedentes
pessoais: segundo gemelar nascida a termo parto cesárea sem intercorrência.
Peso
de nascimento 2.670 g comprimento 46,5 cm.
Antecedentes
familiares: nega doença celíaca na família e nega doenças autoimunes na
família.
Exame
físico:
Peso:
9,6 kg e Estatura 79 cm
Emagrecida,
descorada ++, hidratada, eupneica, acianótica, anictérica e afebril.
Abdome
distendido sem visceromegalia, glúteo hipotrofiado.
Músculos
da coxa hipotônicos e hipotrofiados.
Exames
solicitados:
Anticorpo
antitransglutaminase (ATG),
Imunoglobulinas séricas,
Prova
de absorção da D-Xilose,
Hemograma,
Biópsia
de intestino delgado.
Resultados:
ATG= 34U/ml reagente >10 U/ml
D-Xilose 8 mg/dL (normal
>25mg/dL)
Hemoglobina: 10,8 g/dL.
IgA 292 mg/dL
Evolução
Aos
2 anos e 7 meses, 6 meses após o início da dieta isenta de glúten encontrava-se
assintomática.
Peso
12,2 kg, Estatura 86 cm.
ATG
3 unidades (referência < 4U/mL).
Mantida
dieta isenta de glúten.
Aos
6 anos, assintomática, ainda conservando a dieta isenta de glúten.
ATG
2 U/mL
Biópsia
do intestino delgado: vilosidades digitiformes, raros linfócitos
intra-epiteliais; relação vilosidade/cripta 4:1
Mantida
dieta isenta de glúten
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