O Projeto e a Elaboração da Tese de Doutorado
Levando-se
em consideração as percepções do bem estar de saúde das crianças índias na
primeira visita ao PIX, em dezembro de 1970, as quais foram reafirmadas nas
visitas posteriores nos anos de 1971 e 1972, sob a orientação do Dr.
Roberto Baruzzi, decidimos elaborar um projeto de pesquisa para avaliar de
forma objetiva, utilizando métodos antropométricos cientificamente comprovados,
o estado nutricional das crianças índias habitantes da região do Alto
Xingu. Entretanto, naquela ocasião deparávamos com um obstáculo que à
primeira vista parecia potencialmente intransponível, qual fosse, não dispor
das idades das crianças, pois os índios não utilizam calendário, portanto,
tampouco têm o hábito de registrar a data de nascimento dos seus filhos.
Naqueles tempos primordiais das atividades assistenciais da EPM, que se
iniciaram em 1965, devido às dificuldades de comunicação entre nossa cultura e
a da população indígena, não havia sido criada ainda uma ficha de identificação
suficientemente confiável para que pudesse ser adotada na realização de um
trabalho científico. A execução deste projeto de pesquisa revelou de forma
cabal e definitiva a importância de ser elaborado um controle de identificação
rigoroso da população do PIX, o que, diga-se de passagem, de há muito tempo
passou a ser feito com a devida acurácia. Portanto, este projeto de pesquisa
não somente teve um cunho científico como também despertou a atenção para a
necessidade de se realizar um inventário demográfico da população do PIX
(Figuras 1–2–3-4-5).
Figura 1- Prof. Baruzzi
e eu no trabalho preliminar de identificação das crianças para serem incluídas
no projeto de pesquisa.
Figura 2- Prof. Baruzzi e eu ao fim da
identificação das crianças a serem incluídas no trabalho, tendo ao fundo o rio
Tuatuari, afluente do rio Kuluene, que banha o Posto Leonardo.
Figura 3- Prof. Baruzzi fazendo o trabalho de
identificação fotográfica de uma criança índia.
Figura 4- Ficha de identificação das crianças
já na aldeia durante o trabalho de campo.
Figura 5- Vista aérea do trabalho de campo.
O
fato que se apresentava era a possibilidade de se realizar um projeto de
avaliação do estado nutricional de uma população nativa, vivendo praticamente
nas mesmas condições que aquela verificada por ocasião do descobrimento do
Brasil, em suma uma oportunidade absolutamente original. Aliás,
vale ressaltar que, embora de forma meramente visual, este tipo de avaliação já
havia sido feito por alguém que não era médico e sim escriba da expedição de
Pedro Álvares Cabral. Trata-se de Pero Vaz Caminha que, em minha opinião,
revelou-se ser o primeiro Nutrólogo de língua portuguesa que se tem notícia.
Este fato ficou atestado em sua carta endereçada ao rei de Portugal, Dom Manoel
“O Venturoso”, imediatamente após aqui desembarcar, conforme a transcrição que
no quadro abaixo se pode ler:
Suas impressões a
respeito do estado nutricional dos nativos brasileiros também foram por mim
confirmadas desde meus primeiros contatos com os índios do Alto Xingu (Figuras
6- 7-8-9-10-11-12).
Figura
6- Índios Kamaiurá em momento de festa na aldeia.
Figura
7- Tradicional festa do Kuarup. Notar a excelente forma física dos índios.
Figura 8- Dança tribal na festa do "Jawari", onde toda a aldeia
participa ativamente.
Figura 9- Festa do "jawari".
Figura
10- Prof. Baruzzi, Tacuman (grande chefe Kamaiurá, considerado o maior pajé da
região do alto Xingu) e eu na lagoa do Ipavu que banha a aldeia Kamaiurá.
Figura 11- Festa tribal em que se pode observar o excelente estado físico dos
índios.
Figura
12- Lactente sorvendo o leite materno em excelente estado nutricional.
Entretanto,
do ponto de vista científico apenas a impressão subjetiva de eutrofia não era
aceitável, impunha-se uma investigação que preenchesse as exigências da
ciência, porém, conforme anteriormente referido, não dispúnhamos do
conhecimento da idade das crianças. Fui, então, em busca de auxílio entre os
Nutrólogos, experts em matéria de avaliação do estado
nutricional de populações, mas essa busca de ajuda resultou inútil, visto que
todos os profissionais consultados apenas conheciam métodos antropométricos
dependentes da idade exata. Diante deste dilema decidi fazer uma extensa
pesquisa bibliográfica na esperança de encontrar uma solução para este
impasse. Felizmente, após muito pesquisar encontrei uma série enorme de
publicações, principalmente em populações africanas, que deparavam com os
mesmos problemas por nós encontrados, e que, para contorná-los, adotavam
métodos independentes da idade exata ou mesmo independentes da idade.
Basicamente,
o primeiro tipo refere-se àquelas medidas que não necessitam do conhecimento
exato da idade, relativamente ao mês ou semana, mas requerem uma classificação
aproximada da idade, especialmente das crianças que se encontram dentro dos 2
primeiros anos de vida. Estas medidas se baseiam na avaliação de uma variável
antropométrica que apresenta alteração gradual a cada ano de idade, ou então, relações
corpóreas que se alteram com o decorrer dos anos.
Por
outro lado, as medidas independentes da idade baseiam-se essencialmente em
estabelecer relações entre um tecido nutricionalmente lábil e uma estrutura
orgânica sobre a qual a desnutrição proteico-calórica possui efeito menos
contundente, ou seja, são realizadas comparações entre medidas que se afetam
pelas influências do meio ambiente, em particular a nutrição, com medidas que
se encontram sob controle genético. Na prática, a adequação peso-estatura é o
melhor indicador para a avaliação do estado nutricional, porém esta relação ao
ignorar a idade da criança permite avaliar o estado nutricional atual do
indivíduo, ou seja, se existe naquele momento uma adequação do peso em relação
à estatura, mas não permite afirmar uma possível existência de desnutrição no
passado. Em outras palavras, pode-se verificar a existência de uma adequação
atual do peso em relação à estatura, mas não possibilita a análise
retrospectiva do estado nutricional do indivíduo, isto é, torna impossível
saber se sua estatura está adequada à idade cronológica. Portanto, não permite
descartar a ocorrência de nanismo nutricional.
O
conhecimento da idade exata da criança permite estabelecer a diferenciação
entre desnutrição aguda (peso inferior ao esperado para a idade e estatura
adequada para a idade) e desnutrição pregressa, de longa duração (peso adequado
à estatura, porém ambas as medidas inferiores à normalidade para a idade),
ainda mais, reconhecer a existência da associação de desnutrição atual com
pregressa. Para poder contornar a possível ocorrência deste viés decidimos
realizar a avaliação do estado nutricional das crianças durante 3 anos
consecutivos, sempre na mesma época do ano (julho), para evitar possíveis
influências sazonais sobre a variável a ser investigada.
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