quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Alergia Alimentar na infância e suas manifestações digestivas: uma enfermidade emergente no mundo atual (2)

Histórico

No passado, praticamente até meados do século XX, nas mais diversas formas de sociedades e culturas existentes (Figuras 6 – 7 e 8), salvo raríssimas exceções, as crianças eram rotineiramente amamentadas ao seio materno de forma exclusiva e por tempo prolongado.




Figura 6- Lactente de sociedade dita de "cultura primitiva" mamando com total naturalidade.






Figura 7- Lactente da sociedade dita "moderna" que recebeu aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado, seguindo, assim, um hábito cultural tradicional.




Figura 8 - Lactente pertencente à família moradora da favela Cidade Leonor cuja mãe se incorporou ao programa de promoção do aleitamento natural exclusivo e venceu mitos e tabus negativos em relação ao aleitamento natural.


Entretanto, como é do conhecimento geral, as mudanças ocasionadas pelo desenvolvimento tecnológico industrial, em meados do século XIX e definitivamente consolidadas no século XX, entre as sociedades ditas “modernas”, nas quais as mulheres passaram a ocupar um espaço significativo no mercado de trabalho, associadas ao amplo e contínuo desenvolvimento da indústria de alimentos, levaram, em consequência, a uma drástica redução da prática do aleitamento materno. Outros tipos de leite, distintos do materno, foram sendo, então, progressivamente introduzidos em idades cada vez mais precoces na alimentação dos lactentes; a partir dessa mudança de hábitos e costumes começaram a aflorar os problemas dessa nova prática nutricional e, assim, passaram a surgir as Alergias Alimentares em escala cada vez mais crescente.


Vale a pena lembrar que os efeitos adversos dos alimentos são reconhecidos desde épocas imemoriais. Hipócrates já havia observado, há 2.000 anos, que a ingestão de leite de vaca pode provocar problemas gastrointestinais e urticária, mas hipersensibilidade aos alimentos foi poucas vezes descrita até que Von Pirquet, em 1906, introduziu o conceito de Alergia. O primeiro caso de APLV foi descrito na literatura médica da Alemanha, em 1901, nos EUA a primeira referência ao problema data de 1916, enquanto que na Inglaterra verifica-se apenas uma descrição de APLV antes de 1958 (15-16).


Na busca de substitutos do leite de vaca, para o tratamento de crianças com sintomas de alergia, passaram a ser desenvolvidas fórmulas preparadas industrialmente a partir da proteína vegetal da soja, introduzidas em 1929, ainda que tais preparações já fossem conhecidas e utilizadas desde 1909, porém em pequena escala. Posteriormente, já na década de 1940, surgiram os preparados de hidrolisados da caseína e do soro leite como alternativa no tratamento das alergias alimentares múltiplas. Mais recentemente, no fim do século XX, passaram a ser elaboradas as fórmulas à base de mistura de aminoácidos, as quais são praticamente desprovidas de quaisquer estímulos antigênicos. Elas são indicadas naqueles casos de comprovada intolerância aos hidrolisados protéicos extensivamente hidrolisados.


Genética associada ao meio ambiente: fatores que contribuem para o surgimento da Alergia Alimentar


Atualmente, está bem estabelecido que há uma significativa contribuição genética para o surgimento de alergia e, mais ainda, que inúmeros genes tem sido identificados como responsáveis pelo aparecimento tanto de eczema quanto de asma. Mutações genéticas têm sido descritas em até 27% dos pacientes portadores de eczema grave e estas parecem conferir fatores de risco para a persistência da doença, sensibilização para alergias múltiplas, e aparecimento de asma associada ao eczema. A descoberta dessas mutações genéticas demonstra de forma inequívoca a importância do papel da ruptura da barreira de defesa da pele como fator primordial na patogênese do eczema e na sensibilização alérgica (17).


É interessante assinalar que, no caso dos pacientes portadores de eczema grave, foram encontrados auto-anticorpos circulantes dirigidos contra determinadas proteínas celulares. Este fato levou à especulação de que aquilo que se iniciou como um processo essencialmente alérgico sofreu uma evolução para tornar-se uma enfermidade auto-imune. Daí a necessidade de se programar ações efetivas para prevenir a evolução da doença para a cronicidade.


A “Marcha da Alergia” nos lactentes de alto risco


Como já foi anteriormente referido APLV tende a apresentar remissão espontânea, mas geralmente vem a ser substituída por outra manifestação de alergia. O surgimento de eczema é frequentemente visto como o prenúncio de que ocorreu a sensibilização do organismo por algum alergeno alimentar, com aumento dos níveis de IgE especificamente para um determinado alimento, cujos picos séricos se mantém dentro dos primeiros 2 anos de vida. Este cortejo sintomático é seguido por um incremento da sensibilização por alergenos inalatórios, os quais, por sua vez, acarretam uma correspondente elevação na incidência de asma e rinite. Eczema atópico é geralmente a primeira manifestação da doença alérgica, sendo que cerca de metade de todos os lactentes que sofrem de eczema acabam por apresentar asma, enquanto que 2/3 deles desenvolvem rinite alérgica nos anos subseqüentes. Esta associação de eventos patológicos é frequentemente referida como a “Marcha da Alergia” (18).


A sensibilização por alergenos inalatórios e alimentares é bastante comum no caso de surgimento de eczema atópico. Há uma clara evidencia de que a ocorrência de sensibilização atópica em lactentes portadores de eczema representa um marcador da intensidade da doença. A sensibilização provocada por alimentos e agentes inalatórios está associada ao aparecimento de eczemas mais graves, aumento do risco para a persistência da doença além dos 7 anos de vida, e também, risco maior para o surgimento de alergia das vias respiratórias.


Estudos realizados na década de 1980, utilizando testes de provocação, tipo duplo cego, com alimentos controlados e placebo, já comprovavam que 30 a 56% das crianças portadoras de eczema moderado ou grave apresentavam AA. A eliminação da dieta destes alergenos alimentares acarretava significativa regressão da lesão atópica. É necessário evitar a ingestão do alimento alergênico, posto que mesmo mínimas quantidades do antígeno alimentar são capazes de induzir a síntese de IgE específica, e, portanto, levar à liberação de histamina desde os basófilos, a qual por sua vez determina a deflagração dos sintomas de Alergia (19).


O acompanhamento rotineiro dos pacientes e a conseqüente realização de testes de provocação constituem importante estratégia de atuação, posto que a história natural da doença, para a vasta maioria dos pacientes, é a aquisição de tolerância em relação aos alergenos, ao longo dos tempos.

Referências Bibliográficas

15. Johansson, S.G. e cols., Allergy 2001; 56: 813-24.
16. Werfel, T. e cols., Allergy 2007; 62: 723-28.

17. Illi, S. e cols., J Allergy Clin Immunol 2004; 113: 925-31.

18. Uguz, A. e cols., Clin Exp Allergy 2005; 35: 746-50.

19. Bindslev-Jensen, C. e cols., Allergy 2004; 59: 690-97.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Alergia Alimentar na infância e suas manifestações digestivas: uma enfermidade emergente no mundo atual (1)

Introdução

Alergia Alimentar (AA), aos mais diversos alimentos da dieta, constitui-se em um problema cada vez mais comum na infância, em especial durante os 2 -3 primeiros anos de vida, e pode se apresentar com um amplo espectro de sinais e sintomas que afeta principalmente os tratos digestivo, respiratório e tegumentar. O leite de vaca, durante o primeiro ano de vida, representa o principal alergeno da dieta e envolve inúmeras de suas múltiplas proteínas presentes em sua composição. É importante assinalar que alergia à proteína do leite de vaca (APLV) trata-se de uma enfermidade temporária que, na imensa maioria dos casos, apresenta remissão espontânea até o terceiro ano de vida, em alguns casos desaparece mesmo ao final do primeiro ano. Vale ressaltar que é secundada pela alergia à proteína da soja, e que, em muitas circunstâncias ocorre uma reação cruzada com APLV.

Atualmente está bem estabelecido que há um importante componente genético, que atua como fator predisponente, o qual se associa a um fator desencadeante (proteína heteróloga) para o surgimento da AA. Por outro lado, o fator genético isoladamente não pode ser responsabilizado pelo significativo aumento da prevalência das doenças alérgicas, as quais tem sido caracterizadas cada vez mais frequentemente nestas últimas 2 décadas. Este incremento deve ser definitivamente atribuído a uma série de interações do complexo “genética-meio ambiente”, as quais ocorrem durante a gravidez ou mesmo logo após o nascimento do ser humano, ainda durante os primeiros meses de vida extra-uterina (Figura 1) (1).


Figura 1- Esquema dos vários fatores envolvidos na gênese da AA.

Definições

Para facilitar o entendimento dos conceitos e uniformizar a nomenclatura utilizada no presente trabalho são apresentadas a seguir as definições das principais reações adversas aos alimentos.

Hipersensibilidades Alimentares são reações adversas aos alimentos que incluem quaisquer manifestações anormais resultantes da ingestão de um determinado alimento e podem ser o resultado de Intolerâncias Alimentares ou AA (2).

Intolerâncias Alimentares são respostas adversas causadas por uma característica fisiológica específica do hospedeiro, tais como as afecções metabólicas (por exemplo, deficiência de Lactase) (3).

Alergias Alimentares (AAs) são reações adversas imunologicamente determinadas que podem ser devidas a mecanismos mediados por IgE, não IgE ou mistas (4).

Reações Tóxicas podem simular Hipersensibilidades Alimentares e são tipicamente causadas por fatores inerentes aos alimentos tais como contaminantes tóxicos (por exemplo, liberação de histamina em envenenamento por determinadas espécies de peixes), ou substâncias farmacológicas contidas nos alimentos (por exemplo, tiramina em queijos envelhecidos), as quais podem afetar a maioria dos indivíduos sadios quando oferecidas em doses suficientemente elevadas (5).

Aversões Alimentares podem mimetizar reações de Intolerância Alimentar, porém, elas costumam não ser reproduzíveis quando se realiza um teste "cego" do alimento a ser ingerido e ao qual se suspeitava haver Intolerância (6).

Resumidamente, as reações adversas (Hipersensibilidades) - Intolerâncias Alimentares ou AA – podem ser classificadas em:

1- Intolerância/Hipersensibilidade Não Alérgica

2- Alergia Alimentar/Hipersensibilidade Alérgica

Mediada por IgE

• Não Mediada por IgE

• Mistas

3- Reações Tóxicas

4- Aversão Alimentar

Hipersensibilidade alérgica aos alimentos – AAs - necessariamente envolvem mecanismos imunológicos em reação a uma ou mais determinada proteína e podem ser divididas em 3 tipos fundamentais, a saber (7):

1- Mediadas por IgE (hipersensibilidade imediata) (Figura 2); admite-se que as reações de alergia mediadas por IgE sejam responsáveis por 60% dos casos.
Figura 2- Lesões de urticária gigante provocadas por AA (ingestão de camarão). Notar as lesões eritemato-papulosas disseminadas no tronco do paciente.
2- Não mediadas por IgE (Figura 3):

a) hipersensibilidade tardia ou celular;

b) formação de imunecomplexos e vasculite.

Figura 3- Paciente portador de alergia APLV e da soja apresentando quadro de diarréia crônica com síndrome de má absorção, levando a perda de peso e parada do ritmo de crescimento. Notar a nítida diminuição do tecido celular sub-cutâneo, a atrofia da musculatura da região glútea e raiz das coxas, além da distensão abdominal provocada pela flacidez da musculatura do abdome.
3- Mistas, quando ambos os mecanismos estão presentes (Figura 4).
Figura 4- Material de biópsia do intestino delgado de um paciente portador de gastroenteropatia eosinofílica. Observar a atrofia vilositária associada a intenso infiltrado inflamatório linfo-plasmocitário e eosinofílico na lâmina própria da mucosa jejunal.
As reações mediadas por IgE tendem a surgir dentro de segundos ou minutos após a ingestão do alimento alergênico, ao passo que AA que tarda dias ou semanas para se manifestar é mais provável que não seja mediada por IgE. AA pode afetar vários sistemas do organismo e os mais freqüentemente envolvidos são os tratos digestivo e respiratório, e a pele. Manifestações de APLV podem afetar todos os segmentos do trato digestivo, a saber: esôfago, estômago, intestino delgado, colo e reto (8).
Alergias Alimentares apresentam sua maior prevalência durante os primeiros anos de vida e afetam cerca de 6% das crianças menores de 3 anos de idade. Está bem estabelecido que a causa mais freqüente de AA é a APLV. Aproximadamente 2,5% dos recém-nascidos demonstram reações de APLV durante o primeiro ano de vida. Muito embora a APLV seja uma enfermidade transitória, ainda assim, em torno de 80% dos pacientes afetados podem manter-se alérgicos além do primeiro ano de vida. Por outro lado, a maioria das crianças perde sua hipersensibilidade (adquire tolerância) aos vários alimentos alergênicos entre os 3 e os 5 anos de vida. Lactentes que sofrem de APLV e Soja, cuja reação imunológica não é mediada por IgE, geralmente passam a ser tolerantes a estes alimentos durante o segundo ano de vida. Aqueles lactentes que sofrem de AA (leite de vaca, soja, ovos, etc.), cuja reação imunológica é mediada por IgE tornam-se tolerantes a estes alimentos um pouco mais tarde (85% destas crianças por volta dos 5 anos de idade) (9-10-11).

Antes da década de 1950 a incidência descrita de APLV durante o primeiro ano de vida era muito baixa, aproximadamente 0,1 a 0,3%. Desde então, as estimativas da incidência da APLV aumentaram significativamente e tem variado entre 1,8 a 7,5%, dependendo dos critérios diagnósticos utilizados e da elaboração dos desenhos metodológicos das pesquisas. Indiscutivelmente, APLV é a causa de AA mais comumente confirmada entre lactentes e sua incidência no primeiro ano de vida, diagnosticada em ensaios clínicos prospectivos bem conduzidos, varia de 2 a 3%, e, em seguida vem a alergia à proteína da soja em 0,8% dos casos. É importante salientar que manifestações clínicas reproduzíveis de APLV têm sido relatadas em aproximadamente 0,5% dos lactentes em aleitamento natural exclusivo (12).

Crianças portadoras de afecções atópicas tendem a apresentar maior prevalência de AA; aproximadamente 35% das crianças portadoras de dermatite atópica moderada ou grave sofrem de AA mediada por IgE (Figura 5), e, cerca de 6% das crianças que sofrem de asma apresentam sibilância respiratória induzida por alimentos (13).

Figura 5- Lesão de dermatite eczematosa retroauricular em paciente com APLV e soja.
Com o objetivo de avaliar a percepção dos pais a respeito de possíveis reações adversas causadas pelo leite de vaca, Eggesbo e cols., em 2011, na Noruega, realizaram uma investigação clínica acompanhando um grupo de 3.623 crianças desde o nascimento até que completassem 2 anos de idade, através da aplicação de questionários semestrais. Os autores detectaram uma prevalência de APLV de 7,5% aos 12 meses, 5% aos 24 meses e uma incidência cumulativa de 11,6%, demonstrando, assim, a importância da percepção dos pais quanto à suspeita da existência de reações adversas ao leite de vaca e a necessidade de se estabelecer procedimentos diagnósticos apropriados (14).
Referências Bibliográficas:
1. Cox, H., J Pediatr Gastroenterol Nutr 2008; 47:S45-8.
2. Venter, C. e cols., J Allergy Clin Immunol 2006; 117: 1118-24.
3. Johansson, S. G. e cols., J Allergy Clin Immunol 2004; 113: 832-6.
4. Du Toit, G. e cols., Pediatr Allergy Immnunol 2009; 20: 309-19.
5. Sicherer, S. H. e cols., J Allergy Clin Immunol 2004; 114: 118-24.
6. Kneepkens, C. M. F. e cols., Eur J Pediatr 2009; 168; 891-96.
7. García-Ara, C. e cols., J Allergy Clin Immunol 2001; 107: 185-90.
8. Husby, S., J Pediatr Gastroenterol Nutr 2008; 47: S49-52.
9. Kneepkens, C. M. F. e cols., Eur J Pediatr 2009; 168: 891-96.
10. Pereira, B. e cols., J Allergy Clin Immunol 2005; 11: 884-92.
11. Johansson, S.G. e cols., Allergy 2001; 56:813-24.
12. Sampson, H.A., J Allergy Clin Immunol 2004; 113:805-19.
13. Spergel, J. M. e cols., J Allergy Immunol 2003; 112: S118-27.
14. Eggesbo, M. e cols., Pediatr Allergy Immunol 1999; 10: 122-32


No nosso próximo encontro continuarei a discutir este tema tão atual e fascinante.