sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Alergia Alimentar na infância e suas manifestações digestivas: uma enfermidade cada vez mais prevalente no mundo moderno (8)

Critérios Diagnósticos

História Clínica e Testes de Provocação

A História Clínica continua a ser o principal pilar para estabelecer o diagnóstico de AA, em especial nos pacientes menores de 6 meses de idade, posto que até esta idade a imensa maioria dos lactentes recebe apenas um tipo de alimento, seja leite de vaca ou de outro animal, fórmula láctea ou de soja. Por esta razão, torna-se mais fácil estabelecer uma relação direta causa-efeito, devido à monotonia da dieta ofertada ao lactente, diferentemente daquelas situações em que o paciente de maior idade já recebe uma dieta bastante diversificada. Vale salientar que mesmo lactentes em aleitamento natural exclusivo, embora raramente, também podem apresentar manifestações clínicas de AA devido à passagem de antígenos alimentares via leite materno. Por outro lado, naquelas crianças maiores, que já recebem uma dieta com grande diversidade de alimentos, inúmeras outras variáveis passam a entrar em jogo, o que vai dificultar sobremaneira estabelecer a qual ou a quais alimentos o paciente apresenta Alergia. A confecção de diários alimentares costuma ser útil, principalmente quando a dieta do paciente é bastante diversificada e, também, quando o problema se torna crônico.

Do ponto de vista diagnóstico é interessante tentar categorizar a afecção alérgica pelo órgão alvo predominantemente atingido e pelo mecanismo de resposta imunológica observado. Reações mediadas por IgE costumam surgir rapidamente, enquanto que as não mediadas por IgE tornam-se evidentes apenas algumas horas ou dias após a ingestão do alergeno.
Atualmente há um consenso internacional de que o Padrão Ouro (“Gold Standard”) para o diagnóstico de AA é o teste de Provocação Duplo-Cego Controlado com Placebo (PDCCP). Entretanto, há também uma aceitação geral de que na imensa maioria das vezes a realização do teste de PDCCP é praticamente inviável, em especial quanto menor for a idade do paciente. Diante da notória dificuldade de se realizar rotineiramente o teste PDCCP, tem sido também preconizada a realização de testes de provocação abertos ou simples-cegos no rastreamento de possíveis alergenos alimentares. Para aumentar a acurácia dos testes de provocação, o alimento ou os alimentos supostamente provocadores de Alergia devem ser retirados da dieta do paciente por um período de 7 a 14 dias antes da realização do teste de provocação. Vale lembrar que alguns pacientes podem sofrer de Alergia a múltiplos alimentos e, então, nestes casos é recomendável submetê-los a uma dieta à base de hidrolisado protéico extensivamente hidrolisado por um período de 4 a 6 semanas antes de serem iniciados os testes de provocação (36).


Testes Diagnósticos

Para as afecções mediadas por IgE, os testes cutâneos (“prick tests”) se constituem em um rápido e sensível método de rastreamento para alimentos específicos. Testes negativos essencialmente confirmam a ausência de reação alérgica mediada por IgE (acurácia preditiva negativa superior a 95%). Em geral, respostas negativas aos testes cutâneos são extremamente úteis para excluir Alergias Alimentares mediadas por IgE, e, por outro lado, testes cutâneos positivos, na maioria das vezes, sugerem a existência de AA, embora sua especificidade (taxa de falso positivos) não seja tão elevada quanto a sensibilidade. Idealmente, ao se obter uma resposta positiva do teste cutâneo deve-se considerar confirmatório o diagnóstico de AA quando este vier associado a uma história clínica altamente sugestiva de reação alérgica ao alimento em questão (37).

É importante assinalar que até o presente momento não se dispõe de nenhum teste cutâneo que seja confiável para o diagnóstico de AA NÃO mediada por IgE.


O teste sorológico qualitativo denominado “Radioallergosorbent test” (RAST) fornece evidências sugestivas de AA mediadas por IgE, porém este método tem a tendência de vir a ser progressivamente substituído por outros que são quantitativos, como por exemplo o CAP System FEIA, os quais tem demonstrado experimentalmente serem mais eficientes quanto aos seus valores preditivos (38).

No caso específico das manifestações das hipersensibilidades gastrointestinais uma variedade de outros testes laboratoriais podem ser extremamente úteis. Por exemplo, cerca de 50% dos pacientes portadores de Esofagite Eosinofílica e de Gastroenteropatia Eosinofílica apresentam eosinofilia periférica e podem também sofrer de anemia por perda de sangue nas fezes e diminuição nos níveis das proteínas séricas, em especial a albumina. A Endoscopia e/ou Colonoscopia com a realização das respectivas biópsias se constituem em excelentes testes diagnósticos complementares, muitas vezes evidenciando aspectos bastante característicos das lesões causadas pelos alergenos alimentares.


Os Esquemas 1 e 2, extraídos de Philippe Eigenmann e por mim modificados, ilustram uma sugestão, quanto à realização dos testes de provocação, para os passos diagnósticos das Alergias Alimentares mediadas por IgE e as não mediadas por IgE (39).

 

Tratamento

O tratamento da AA baseia-se estritamente na eliminação do alergeno da dieta do paciente. Enquanto o paciente estiver recebendo uma dieta baseada em apenas um determinado alimento, como geralmente ocorre com os lactentes menores de 6 meses, seja fórmula láctea ou fórmula de soja, torna-se facilmente identificável qual a proteína que deve ser retirada da dieta. Entretanto, quando a dieta do paciente passa a ser mais variada já tendo ocorrido a introdução de outros alimentos a identificação do alergeno pode ser uma tarefa extremamente difícil de ser exercida com sucesso. Portanto, quanto mais diversificada for a dieta de um paciente que se suspeita ser portador de AA mais trabalhoso será identificar um ou mais agentes alergênicos. Por esta razão, estrategicamente, deve-se sempre restringir ao máximo o número e a variedade dos alimentos empregados na dieta do paciente, porém, é imperioso que se tome todo o cuidado para não provocar alguma deficiência nutricional.


 Lactente em Aleitamento Artificial

Nesta circunstância o paciente deve receber única e exclusivamente uma dieta hipoalergênica, ou seja, uma fórmula à base de hidrolisado protéico extensivamente hidrolisado durante um período não inferior a 12 semanas, podendo inclusive prolongar-se até o final do primeiro ano de vida dependendo do critério do médico assistente. É esperado que as manifestações clínicas desapareçam dentro das próximas 48 horas depois da introdução da fórmula hipoalergênica. Caso os sintomas persistam ou reapareçam dentro de alguns dias após a introdução da fórmula hipoalergênica, deve-se suspeitar de intolerância à fórmula à base de hidrolisado protéico. Apesar das proteínas serem extensivamente hidrolisadas nas fórmulas à base de hidrolisados protéicos disponíveis no mercado ainda assim apresentam em sua composição pequenas frações peptídicas que podem desenvolver estímulo antigênico. Tem sido nossa experiência pessoal, aliada à experiência internacional, que cerca de 10 a 15% dos pacientes podem desenvolver intolerância às fórmulas à base de hidrolisado protéico. Ao se suspeitar ou mesmo se caracterizar a ocorrência de intolerância à fórmula à base de hidrolisado protéico, deve-se substituí-la para uma fórmula à base de mistura de amino-ácidos, a qual não tem qualquer estímulo antigênico, visto que são desprovidas de frações peptídicas potencialmente alergênicas. Após o sexto mês de vida devem ser introduzidos novos alimentos, porém, sempre tendo-se a devida precaução de evitar a utilização de leite de vaca e derivados, bem como produtos contendo soja. A introdução desses novos alimentos deve ser feita de forma gradual para que se possa ter uma observação criteriosa da sua tolerabilidade por parte do paciente. Como esta enfermidade tem caráter transitório, no final do primeiro ano de vida pode-se realizar um teste de desencadeamento com fórmula láctea. O desencadeamento deve ser realizado com supervisão médica, posto que, embora muito raramente, pode ocorrer choque anafilático caso o paciente ainda seja alérgico ao leite de vaca.

Lactente em Aleitamento Natural


Como já foi referido anteriormente o leite humano pode ser veículo de transporte de proteínas estranhas, potencialmente alergênicas, e desta forma, indiretamente, provocar manifestações de AA. Entretanto, é de fundamental importância que NÃO seja suspenso o Aleitamento Materno, e SIM tratar de eliminar da dieta da mãe o suposto alergeno. Inicialmente deve-se eliminar o leite de vaca e seus derivados, bem como a soja e todos os produtos industrializados que contenham esta substância. Além destes alimentos  deve-se também propor a eliminação da dieta da mãe dos seguintes outros alimentos: amendoim, frutos secos (castanhas, nozes e avelã), frutos do mar , peixe e ovo. Após a eliminação destes alimentos a sintomatologia deve regredir significativamente, ou mesmo desaparecer dentro das próximas 48 horas. Caso a sintomatologia persista deve-se pensar que outros alimentos, além dos anteriormente referidos, também podem estar envolvidos como causa da alergia. Nem sempre é fácil detectar qual ou quais outros alimentos podem estar perpetuando as manifestações clínicas, porém, deve-se buscar à exaustação o possível alergeno por meio da elaboração de diários da alimentação da mãe, na tentativa de se estabelecer uma relação causa-efeito.
Prevenção da Alergia Alimentar
  
Um grupo de “experts” da seção de Pediatria da Academia Européia de Alergologia e Imunologia Clínica recentemente publicou as recomendações para prevenir as doenças alérgicas em lactentes e pré-escolares, as quais abaixo estão transcritas (40):

O aleitamento natural exclusivo é altamente recomendado para todos os lactentes independentemente da sua hereditariedade quanto à Alergia. As seguintes observações baseadas em evidências devem ser levadas em consideração:



1-   A adoção de um regime dietético para a prevenção de Alergia, nos lactentes de alto risco (antecedentes hereditários de Alergia nos pais e/ou irmãos), particularmente em relação à AA (Alergia ao Leite de Vaca) e Eczema (atópico ou não atópico) mostra-se altamente eficiente. O regime dietético de maior eficácia é o aleitamento natural exclusivo por pelo menos 6 meses; porém, no caso de não ser possível a prática do aleitamento natural, a introdução de fórmula com documentada hipoalergenicidade, por pelo menos 4 meses, combinada com a restrição da introdução de alimentos sólidos e leite de vaca durante o mesmo período, é altamente recomendada.

2- Não há evidências conclusivas documentadas de que qualquer exclusão dietética na mãe durante a gravidez ou no período de lactação apresenta efeito protetor sobre o lactente.


3- Não há qualquer evidência quanto a um possível efeito preventivo no que diz respeito a imposições de restrições dietéticas após os 6 meses de vida. Além disso, há insuficiente evidência para que se faça qualquer recomendação quanto às estratégias para a dieta do desmame.
Conclusão

AA trata-se de uma entidade clínica cada vez mais prevalente afetando indivíduos de todas as faixas etárias, mas especialmente as crianças nos 2-3 primeiros anos de vida.

APLV é a enfermidade mais prevalente apresenta caráter temporário e tem remissão espontânea. AA pode envolver os mais diversos mecanismos das reações imunológicas, o que lhe confere uma sintomatologia extremamente diversificada e que pode dificultar o diagnóstico pela falta de testes suficientemente específicos para tal. O método diagnóstico para a maioria das Alergias Alimentares universalmente mais aceito é o da provocação em ensaio duplo-cego, o qual na prática, nem sempre é exeqüível. O tratamento da AA se dá pela retirada da dieta do paciente do suposto ou confirmado alergeno.

Referências Bibliográficas

36. Bock, S. A. e cols., J Allergy Clin Immunol 1988; 82: 86-97.

37. Sampson, H. A. e cols., J Allergy Clin Immunol 1984; 74: 6-33.

38. Bousquet, J e cols., J Allergy Clin Immunol 1990; 82: 1039-43.

39. Eigenmann, P. e cols., Pediatr Allergy Immunol 2008; 19: 276-8.

40. Sampson, H. e cols., Pediatr Allergy Immunol 2008; 19: 1-4.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Alergia Alimentar na infância e suas manifestações digestivas: uma enfermidade cada vez mais prevalente no mundo moderno (7)

Enteropatia Alérgica Pós- Enterite

O quadro clínico dessa síndrome em muito se assemelha à anterior, a diferença fundamental reside no fato de as manifestações clínicas surgirem em um lactente, até aquele momento sem qualquer sintomatologia suspeita de AA, após um episódio de gastroenterite aguda por algum agente enteropatogênico capaz de provocar uma lesão importante na mucosa do intestino delgado levando à ruptura da barreira de permeabilidade intestinal (Figuras 19-36-37-38 e 39), proporcionando, assim, a penetração maciça das proteínas heterólogas da dieta, potencialmente alergênicas.

 


Figura 36- Material de biópsia de intestino delgado à microscopia óptica comum, grande aumento, mostrando nichos de Escherichia coli enteropatogênica firmemente aderidas à superfície mucosa do intestino delgado provocando intensa atrofia vilositária.



Figura 37- Material de biópsia do intestino delgado à microscopia óptica comum, corte semi-fino, evidenciando nichos de Escherichia coli aderidas à superfície epitelial do intestino delgado.



Figura 38- Material de biópsia do intestino delgado à microscopia eletrônica mostrando o início da lesão provocada por cêpa de Escherichia coli sobre as microvilosidades, levando a distorsão e alongamento das mesmas.



Figura 39- Material de biópsia do intestino delgado à microscopia eletrônica evidenciando a típica lesão em pedestal provocada por cêpa de Escherichia coli enteropatogênica. Notar que há total destruição das microvilosidades.



Em pacientes susceptíveis de Alergia, pode-se instalar um quadro clínico de perpetuação da diarréia (diarréia persistente) associada à síndrome de má absorção com perda de peso e parada do ritmo de crescimento (Figuras 40-41 e 42).



Figura 40- Gráfico do crescimento pondero-estatural da paciente portadora de AA pós gastroenterite. Notar a significativa perda de peso e completa parada do rítmo de crescimento.








Figuras 41 e 42- Paciente portadora de AA (a mesma do gráfico acima) evidenciando grave desnutrição devido à síndrome de má absorção por ocasião do diagnóstico de AA.


Os principais agentes enteropagênicos potencialmente causadores deste tipo de lesão da mucosa do intestino delgado são as cepas enteropatogênicas de Escherichia coli e o Rotavirus. As Alergias Alimentares podem ser a múltiplos alimentos, e igualmente à situação acima descrita, a duração da AA é transitória, e após a introdução de tratamento dietético apropriado ocorre completa recuperação clínica e nutricional (Figuras 43 e 44).




Figura 43- Gráfico de crescimento da paciente acima após a introdução de dietoterapia apropriada; notar a significativa recuperação pondero-estatural, mas ao mesmo tempo a ocorrência de AA múltipla por tempo prolongado.



Figura 44- Paciente em fase de total recuperação clínica e nutricional.



Outro agente bacteriano patogênico para o ser humano que deve ser considerado como potencial causador de AA devido às suas propriedades de invasão da mucosa gástrica é o Helicobacter pylori (Figuras 45 e 46). Como é do conhecimento geral, a prevalência da infecção por esta bactéria é extremamente elevada em ambientes desprovidos de saneamento ambiental, com alto grau de confinamento e íntimo contacto físico interpessoal, o que pode se tornar em fator altamente propício para a deflagração de AA nos indivíduos susceptíveis.




Figura 45- Esquema de lesão da mucosa gástrica provocada pelo Helicobacter pylori.





Figura 46- Esquema de proposta de provocação de AA devido a infecção pelo Helicobacter pylori.

No nosso próximo encontro continuarei a exposição de novos aspectos deste fascinante tema.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Alergia Alimentar na infância e suas manifestações digestivas: uma enfermidade cada vez mais prevalente no mundo moderno (6)

ESOFAGITE EOSINOFÍLICA E GASTROENTEROPATIA EOSINOFÍLICA

Estas duas entidades alérgicas podem ser mediadas por IgE e também não mediadas por IgE, ou ainda por ambos os mecanismos imunológicos. Caracterizam-se por intensa infiltração de eosinófilos ao longo das mucosas do esôfago, estômago e intestino delgado, associada à hiperplasia da zona basal, alongamento das papilas, ausência de vasculite e eosinofilia periférica em até 50% dos casos (Figura 26) (33).

Figura 26- Material de biópsia do intestino delgado de paciente portador de Gastroenteropatia Eosinofílica, evidenciando importante atrofia vilositária e intenso infiltrado linfo-plasmocitário e eosinofílico na lâmina própria.

Esofagite Eosinofílica é mais frequentemente observada em escolares e adolescentes e tipicamente se apresenta com sintomas de refluxo gastro-esofágico, como por exemplo, náusea, disfagia, vômitos e dor epigástrica.

Gastroenterite Eosinofílica pode ocorrer em qualquer idade, inclusive em lactentes, particularmente nestes últimos a manifestação clínica pode ser de estenose hipertrófica do piloro, com vômitos intensos. Perda de peso ou ganho pondero-estatural insuficiente é uma característica marcante dessa entidade clínica. Na dependência da extensão e da localização do envolvimento do processo inflamatório, o paciente pode apresentar dor abdominal, vômitos, diarréia, sagramento intestinal, anemia ferropriva e até mesmo enteropatia perdedora de proteínas, levando a edema dos membros inferiores devido à hipoalbuminemia (Figura 27).

Figura 27- Paciente portador de Gastroenteopatia Eosinofílica com enteropatia perdedora de proteínas; notar discreto edema tibial biteral devido à hipoalbuminemia.
COLITE ALÉRGICA


A manifestação clínica mais intensa e exuberante é a diarréia sanguinolenta associada a cólicas, as quais estão presentes em cêrca de 90% dos pacientes. Geralmente os sintomas apresentam-se de início insidioso instalando-se na imensa maioria dos casos nos primeiros 6 meses de vida, mais particularmente ainda nos primeiros 3 meses. O sangue costuma ser "vivo" misturado às fezes, e, em algumas circunstâncias pode haver apenas sangramento retal em decorrência do processo inflamatório que afeta a mucosa colônica, tratando-se, portanto, de uma lesão interna. O sangramento costuma ser intermitente e de escassa quantidade; somente em raras situações pode haver perda importante de sangue, acarretando anemia aguda. Em alguns casos, especialmente quando o lactente está recebendo aleitamento natural o sangramento pode não ser visível a "olho nú", e isto é o que se denomina sagramento "oculto", o qual é detectado através de método imunológico em fezes recém eliminadas (34).

Regurgitação e vômitos também podem estar presentes com frequência muito variável entre 20 e 100% dos pacientes, o que pode ser um fator de interpretação equivocada da Doença do Refluxo Gastroesofágico. Na maioria das vezes não há uma clara percepção do agravo do crescimento pondero-estatural, porém, ao se instituir o tratamento correto nota-se nitidamente a ocorrência de uma rápida recuperação nutricional, com ganho pondero-estatural acelerado.

ENTEROPATIA ALÉRGICA

A Enteropatia Alérgica provocada por uma ou mais proteínas heterólogas da dieta geralmente surge nos primeiros 3 a 6 meses da vida, na imensa maioria dos casos em lactentes recebendo aleitamento artificial (não é freqüente em lactentes recebendo aleitamento natural, porém é possível a passagem de antígenos alimentares via leite humano e em conseqüência disto ocorrer manifestação de AA; vale frisar que a β-lactoglobulina, a principal proteína alergênica do leite de vaca, pode ser detectada no leite humano em 95% das mulheres durante a fase da amamentação), seja através do leite de vaca ou de outro animal, fórmulas lácteas e/ou fórmulas de soja. As principais manifestações clínicas são diarréia, caracterizada por fezes amolecidas e volumosas devido à esteatorréia, perda de peso ou ganho ponderal inadequado, parada no ritmo de crescimento em estatura, distensão abdominal com flatulência e em algumas ocasiões vômitos associados. Ao exame físico o paciente mostra-se com aspecto desnutrido, apático, tecido celular subcutâneo escasso ou mesmo praticamente ausente e hipotrofia e hipotonia muscular, em especial na região glútea (Figuras 28 e 29) (35).




Figuras 28 e 29– Paciente por ocasião do diagnóstico de APLV; notar o aspecto emagrecido, hipotonia e hipotrofia da musculatura, diminuição do tecido celular sub-cutâneo, distensão abdominal e dermatite de fralda caracterizada por lesões eritemato-papulosas na região glútea.

O aspecto físico dos pacientes em muito se assemelha ao que se poderia alcunhar de “Doença Celíaca em miniatura”, a qual pode ser totalmente descartada, posto que, na quase totalidade dos casos, devido à precocidade da faixa etária, os lactentes ainda não tiveram a oportunidade de entrar em contacto com o trigo e derivados em suas dietas. É importante salientar que cerca de 30 a 50% dos pacientes com APLV e derivados apresentam reação alérgica cruzada à Proteína da Soja. Outro aspecto que merece ser ressaltado é que este tipo de AA é transitório tendendo a desaparecer ao final do primeiro ou segundo ano de vida, em contraste com a Doença Celíaca que é uma intolerância definitiva ao trigo e derivados. Os testes de avaliação da função digestivo-absortiva mostram-se anormais, caracterizados por má absorção da D-xilose e excreção anormalmente aumentada de gordura nas fezes, e a biópsia do intestino delgado revela uma atrofia vilositária subtotal, que pode ser focal (Figuras 30-31 e 32).



Figura 30- Gráfico de crescimento pondero-estatural da paciente por ocasião do diagnóstico; observar a perda de peso e a parada do rítmo de crescimento, uma evidencia de importante agravo do estado nutricional devido à síndrome de má absorção como consequência da Enteropatia Alérgica.



Figura 31- Testes da função digestivo-absortiva por ocasião do diagnóstico em um grupo de 40 pacientes portadores de Enteropatia Alérgica. Notar que tanto o teste de absorção da D-xilose quanto o teste da digestão e absorção dos Triglicérides encontram-se significativamente abaixo dos valores observados em indivíduos normais.



Figura 32- Material de biópsia de intestino delgado à microscopia óptica comum, aumento médio, evidenciando atrofia vilositária sub-total e discreta hipertrofia das glândulas crípticas.

Após a introdução de dieta apropriada os pacientes apresentam rápida reversão do quadro diarréico passando a se recuperar clínica e nutricionalmente, e, concomitantemente, o mesmo ocorre com os testes de avaliação da função digestivo-absortiva, e da morfologia do intestino delgado (Figuras 33-34 e 35).

 
Figura 33- Gráfico pondero-estatural do paciente após tratamento dietético e recuperação clínica e nutricional.




Figura 34- Comparação da avaliação da função digestivo-absortiva antes e após o tratamento em um grupo de pacientes portadores de Enteropatia Alérgica; notar também a recuperação da morfologia do intestino delgado evidenciando vilosidades digitiformes, dentro dos padrões da normalidade.


Figura 35- Paciente pós tratamento dietético apropriado em plena recuperação clínica e nutricional (trata-se da mesma paciente das figuras 28 e 29).

Referências Bibliográficas
33. Cherian, S. e cols., Arch Dis Chil 2006; 91: 1000-4.

34. Diaz, N. J. e cols., Arq Gastroenterol 2002; 39:260-67.

35. Host, A., Pediatr Allergy Immunol 1994; 5: 5-36.


No nosso próximo encontro continuarei a discussão sobre este fascinante tema.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Alergia Alimentar na infância e suas manifestações digestivas: uma enfermidade cada vez mais prevalente no mundo moderno (5)

Papel do Colostro

Como foi anteriormente mencionado, recém-nascidos e lactentes nos primeiros meses de vida são desprovidos de muitos dos fatores fisiológicos de proteção oferecidos pela barreira de permeabilidade intestinal para enfrentar o meio ambiente da vida extra-uterina. Afortunadamente, a “natureza” ofereceu um excelente substituto para proteger o lactente vulnerável durante este período crítico da existência. Este substituto, o leite humano, contém inúmeros fatores que compensam de sobra a imaturidade do organismo do lactente, e, ao mesmo tempo, estimula a maturidade do intestino para tornar-se funcionalmente independente. Tem sido largamente demonstrado que a ingestão do colostro favorece a maturação dos enterócitos, aumenta a capacidade absortiva e também acelera o desenvolvimento da barreira de permeabilidade. Além disso, o colostro tem uma ação potencializadora na produção das enzimas das microvilosidades, possui um fator de crescimento da mucosa, favorece a colonização intestinal por lactobacilos bífidos e acidófilos, oferece lactoferrina, e, mais ainda, contém uma alta concentração de IgA secretora, a qual vai proporcionar uma proteção passiva para a superfície intestinal ao longo do processo natural de maturação do intestino do lactente (25).


 Alergenos Alimentares

A diversidade alimentar do ser humano nas mais variadas culturas é vastíssima, mas, na verdade apenas um número relativamente pequeno de alimentos é responsável pela ocorrência das Alergias Alimentares no nosso universo.


A sensibilização pelos alergenos alimentares pode acontecer basicamente de 2 formas, a saber:


1- Trato Gastrointestinal, considerada tradicional ou Classe 1 de AA;


2- Inalação, denominada de AA Classe 2 (26).

Os alergenos Classe 1 mais freqüentemente descritos como causadores de AA nas crianças são o leite, soja, ovo, e, nos EUA, o amendoim, enquanto que nos adultos os alergenos alimentares que mais comumente causam reações alérgicas são o amendoim, castanhas, peixes e frutos do mar.


A maioria dos alergenos alimentares Classe 1 são glicoproteínas solúveis em água com peso molecular que varia entre 10 e 70 kilodaltons, e são razoavelmente estáveis ao aquecimento, desnaturação ácida e ação das proteases.


Por outro lado, é importante ressaltar que proteínas vegetais têm sido cada vez mais caracterizadas como alergenos alimentares e cujas composições aparentemente se assemelham à dos alergenos animais. A maioria dos alergenos de origem vegetal, descritos até o presente, podem ser enquadrados em 2 grandes grupos, de acordo com suas funções na própria planta, a saber:


1- Proteínas de Defesa (incluídas as denominadas proteínas PR ou “proteínas relacionadas à patogenicidade”), as quais estão envolvidas em mecanismos de auto-proteção contra pragas, vírus e parasitas. Estas proteínas também são produzidas como respostas às agressões ambientais e conseqüentemente podem estar presentes em quantidades variáveis dentro de uma mesma espécie de fruta ou vegetal. As profilinas, que tem um papel fundamental na regulação da polimerização dos filamentos de actina e correspondem à maior porção dos alergenos Classe 2, são altamente preservadas em todo o reino vegetal e freqüentemente apresentam uma reação cruzada entre o pólen e o alimento. Os pacientes com freqüência tornam-se sensibilizados ao pólen inalado e, em virtude das reatividades cruzadas com as profilinas das frutas ou vegetais, apresentam sintomas orais e faríngeos após a ingestão da fruta crua ou do vegetal, o que é denominado de AA ao pólen ou Síndrome Alérgica Oral.


2- Proteínas de Estocagem, as quais se encontram acumuladas principalmente nas sementes maduras, e que são mobilizadas durante a germinação como fonte de Nitrogênio (amino-ácidos) e cadeias de Carbono para o embrião e a nova planta, nos momentos iniciais do desenvolvimento da mesma. Neste grupo estão incluídas as superfamílias das prolaminas e das cupinas.


A superfamília das prolaminas inclui as proteínas majoritárias das farinhas de trigo (asma do padeiro), cevada e centeio, e a albumina 2S das leguminosas, frutos secos e especiarias. A superfamília das cupinas agrupa as proteínas tipo germinas, leguminas e vicilinas. Germinas alergênicas têm sido caracterizadas na laranja, pimenta e trigo. As leguminas são alergenos proeminentes no amendoim, soja e frutos secos (castanha do Pará e avelã). As vicilinas estão presentes nos frutos secos e em sementes como o sésamo.

Manifestações Clínicas das Alergias no Trato Digestivo

As hipersensibilidades alimentares, como já anteriormente referidas, são deflagradas em indivíduos geneticamente susceptíveis, presumivelmente quando fracassa o desenvolvimento natural da tolerância oral ou quando este mecanismo sofre algum agravo importante. As reações alérgicas mediadas por IgE surgem quando anticorpos IgE alimentos-específicos residindo nos mastócitos e basófilos entram em contacto e se ligam aos alergenos alimentares circulantes e ativam as células para a liberação de potentes mediadores químicos e citoquinas. Na Tabela 2 estão discriminadas as afecções digestivas causadas por AA até o presente momento conhecidas e seus respectivos mecanismos imunológicos de ação (27).


Síndrome Alérgica Oral

Esta afecção é causada por uma grande variedade de proteínas de plantas que apresentam reação cruzada com alergenos dispersos no meio ambiente, especialmente os polens liberados pelas seguintes plantas: Ambrosia, Bétula e Artemísia. Indivíduos alérgicos a Ambrosia podem apresentar alergia a melão e banana, aqueles que são alérgicos a grama podem desenvolver sintomas ao ingerir tomate cru, e indivíduos alérgicos ao pólen da Bétula podem deflagrar sintomas depois da ingestão de alimentos crus tais como cenouras, maçãs, peras e kiwi. Tendo em vista que os alergenos responsáveis por essas reações são facilmente destruídos pelo calor e pelos ácidos gástricos, na maioria dos pacientes, as manifestações de alergia permanecem circunscritas às mucosas orais e faríngeas (28).

Anafilaxia
Gastrointestinal

Esta é uma manifestação que se apresenta tipicamente de forma aguda com náuseas, dor abdominal em cólica e vômitos; pode ocorrer também o surgimento, em forma concomitante, de manifestações sintomáticas em outro órgão alvo.

Constipação

Muito embora desde longa data haja referência da associação de constipação e APLV, mais recentemente Iacono e cols. em 1995, na Itália, trouxeram este tema de volta à literatura médica. Foram avaliadas 27 crianças menores de 3 anos que sofriam de constipação crônica funcional, as quais foram submetidas a uma dieta de exclusão de leite de vaca e derivados durante 1 mês. Neste período de tempo observou-se que houve aumento no número das evacuações, que estas ocorriam sem dor, houve eliminação de fezes pastosas, e, também, ocorreu cura das fissuras anais em 78% dos casos (21/27). O teste de desencadeamento realizado nas 21 crianças resultou positivo, ou seja, as crianças voltaram a sofrer de constipação, em média 48 horas após a reintrodução do leite de vaca. Ao ser novamente retirado o leite de vaca da dieta destas crianças houve total normalização das evacuações. Posteriormente, em 1998, Iacono e cols., estudaram 65 crianças menores de 6 anos de idade que sofriam de constipação crônica funcional e que não responderam ao tratamento com laxantes. Foram realizados dois testes de desencadeamento duplo-cego e 68% (44/65) dos pacientes revelaram-se alérgicos ao leite de vaca, apresentando normalização das evacuações quando submetidos à dieta isenta de leite de vaca e derivados (29-30).
Em 2001, Daher e cols., em São Paulo, investigaram 25 crianças com idades que variaram de 3 meses a 11 anos que sofriam de constipação funcional e constataram que em 7 (28%) delas a constipação se resolveu quando o leite de vaca foi retirado da dieta por um período de 4 semanas, e, reapareceu dentro das primeiras 48-72 horas após a reintrodução do leite de vaca na dieta. Níveis elevados de IgE foram observados em 5 delas e que regrediram com a dieta de eliminação. Desta forma, alergia ao leite de vaca deve ser considerada naqueles casos de constipação refratários aos tratamentos habituais, muito embora o mecanismo fisiopatológico ainda não esteja definitivamente elucidado (31).

Gastrite Hemorrágica

Trata-se de manifestação clínica bastante incomum e até 2003 tinham sido descritos apenas 10 casos na literatura médica. Entretanto, em 2003, Machado e cols., em São Paulo, descreveram mais 2 casos de gastrite hemorrágica, em crianças de 2 anos de idade que apresentavam desde os 2 meses hematêmese, vômitos e desnutrição. Submetidos à endoscopia digestiva alta observou-se em ambos os pacientes pangastrite erosiva hemorrágica e a biópsia gástrica revelou gastrite aguda ulcerada com intenso infiltrado eosinofílico (24,1 eosinófilos/campo de grande aumento). A biópsia duodenal evidenciou atrofia vilositária sub-total e a biópsia retal colite inespecífica. Após a eliminação de leite de vaca e derivados da dieta houve total regressão da sintomatologia e recuperação do estado nutricional (32).


Referências Bibliográficas

25. Renz, H. e cols., Acta Paediatr Scand 1991; 80: 149-54.

26. Venter, C. e cols., Allergy 2007; 63: 354-59.

27. Sampson, H.A., J Allergy Clin Immunol 1999; 103: 981-89.

28. Sampson, H. e cols., J Allergy Clin Immunol 2004; 113: 805-19

29. Iacono, G. e cols., J Pediatr 1995; 126: 34-39.

30. Iacono, G. e cols., N Engl J Med 1998; 339: 1100-4.

31. Daher, S. e cols., Pediatr Allergy Immunol 2001; 12: 339-42.

32. Kawakami, E. e cols., Jornal de Pediatria 2003; 79: 80-1.

No nosso próximo encontro seguirei a apresentar mais aspectos de interesse deste fascinante tema.



segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Alergia Alimentar na infância e suas manifestações digestivas: uma enfermidade cada vez mais prevalente no mundo moderno (4)

Conceito da Barreira de Permeabilidade Intestinal (continuação)


Em situações patológicas, como por exemplo, nas infecções entéricas por determinados agentes enteropatogênicos, a função seletiva destes poros intercelulares pode estar seriamente comprometida, e, portanto, passar a dar lugar para a penetração maciça de antígenos e levar ao surgimento de alergias alimentares (Figuras 18 e 19).


Figura 18 - Material de biópsia de intestino delgado em microscopia óptica comum em grande aumento, corte semi-fino, mostrando colônias de Escherichia coli enteropatogênica firmemente aderidas à superfície mucosa provocando intensas alterações morfológicas no epitélio intestinal.

Figura 19- Esquema gráfico da sequência fisiopatológica da provocação de AA devido à infecção por Escherichia coli enteropatogênica.
Figura 20- Representação esquemática da barreira da mucosa intestinal.

Além do sistema imunológico, a barreira de permeabilidade intestinal é também formada pelas próprias células epiteliais. Caso, por alguma razão, antígenos ou fragmentos de antígenos potencialmente alergênicos consigam aderir à superfície luminal dos enterócitos, estes serão interiorizados ao citoplasma por um mecanismo de endocitose (reverso da fagocitose); já agora no interior do citoplasma serão atacados e devidamente digeridos pelos lisosomas produzidos pelo aparelho de Golgi, perdendo, assim, sua capacidade de estímulo antigênico. Finalmente serão eliminados da célula no espaço baso lateral por um processo de exocitose (Figuras 21-22 e 23) (23).


Figura 21- Representação esquemática dos mecanismos celulares de proteção da mucosa intestinal.

Figura 22- Representação esquemática do processo de degradação antigênica intracelular.


Figura 23- Material de biópsia do intestino delgado em microscopia eletrônica mostrando a formação de um corpo multivesicular, produto da ação degradativa lisosomal.

Entretanto, a imaturidade no desenvolvimento de vários destes componentes da barreira intestinal e do sistema imunológico nos lactentes reduz de forma significativa sua eficiência, tornando a mucosa entérica suscetível para a penetração de antígenos potencialmente alergênicos (proteínas do leite de vaca e da soja, por exemplo) (Figuras 24 e 25). Sabe-se que a atividade enzimática no período neonatal é sub-ótima, e o sistema da IgA secretora não se encontra totalmente maduro antes dos 4 anos de idade. Conseqüentemente, o estado de imaturidade da barreira mucosa joga um papel importante na prevalência de infecções entéricas e AA observadas nos primeiros anos de vida (24).


Figura 24- Representação esquemática da imaturidade da barreira mucosa no recém-nascido.


Figura 25- Material de biópsia do intestino delgado em microscopia eletrônica mostrando na figura superior duas células intestinais adjacentes submetidas à perfusão com o marcador macromolecular Horseradish peroxidase representado pela imagem enegrecida confinada à região das microvilosidades (V), L mostra o lumen intestinal. Observar o espaço intercelular (seta) totalmente preservado e a mitocôndria (M) intacta. Na figura inferior resultante da perfusão com sais biliares secundários observa-se que o marcador macromolecular provoca uma ruptura no poro intercelular e a imagem enegrecida estende-se ao longo de todo o espaço intercelular (seta). No detalhe podem ser observadas alterações importantes nas organelas com inchaço e degeneração da mitocôndria (M) e do aparelho de Golgi (G).

Referências Bibliográficas

23. Teichberg, S. e cols., Pediatr Res 1983; 17: 381-389.

24. Lifshitz, F., Excerpta Medica 1984; 131-40.


No nosso próximo encontro continuarei a discutir este fascinante tema.