terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Alergia Alimentar na infância e suas manifestações digestivas: uma enfermidade cada vez mais prevalente no mundo moderno (1)

Introdução

Alergia Alimentar (AA), aos mais diversos alimentos da dieta, constitui-se em um problema cada vez mais comum na infância, em especial durante os 2 -3 primeiros anos de vida, e pode se apresentar com um amplo espectro de sinais e sintomas que afeta principalmente os tratos digestivo, respiratório e tegumentar. O leite de vaca, durante o primeiro ano de vida, representa o principal alergeno da dieta e envolve inúmeras de suas múltiplas proteínas presentes em sua composição. É importante assinalar que alergia à proteína do leite de vaca (APLV) trata-se de uma enfermidade temporária que, na imensa maioria dos casos, apresenta remissão espontânea até o terceiro ano de vida, em alguns casos desaparece mesmo ao final do primeiro ano. Vale ressaltar que é secundada pela alergia à proteína da soja, e que, em muitas circunstâncias ocorre uma reação cruzada com APLV.

Atualmente está bem estabelecido que há um importante componente genético, que atua como fator predisponente, o qual se associa a um fator desencadeante (proteína heteróloga) para o surgimento da AA. Por outro lado, o fator genético isoladamente não pode ser responsabilizado pelo significativo aumento da prevalência das doenças alérgicas, as quais tem sido caracterizadas cada vez mais frequentemente nestas últimas 2 décadas. Este incremento deve ser definitivamente atribuído a uma série de interações do complexo “genética-meio ambiente”, as quais ocorrem durante a gravidez ou mesmo logo após o nascimento do ser humano, ainda durante os primeiros meses de vida extra-uterina (Figura 1) (1).


Figura 1- Esquema dos vários fatores envolvidos na gênese da AA.

Definições

Para facilitar o entendimento dos conceitos e uniformizar a nomenclatura utilizada no presente trabalho são apresentadas a seguir as definições das principais reações adversas aos alimentos.

Hipersensibilidades Alimentares são reações adversas aos alimentos que incluem quaisquer manifestações anormais resultantes da ingestão de um determinado alimento e podem ser o resultado de Intolerâncias Alimentares ou AA (2).

Intolerâncias Alimentares são respostas adversas causadas por uma característica fisiológica específica do hospedeiro, tais como as afecções metabólicas (por exemplo, deficiência de Lactase) (3).

Alergias Alimentares (AAs) são reações adversas imunologicamente determinadas que podem ser devidas a mecanismos mediados por IgE, não IgE ou mistas (4).

Reações Tóxicas podem simular Hipersensibilidades Alimentares e são tipicamente causadas por fatores inerentes aos alimentos tais como contaminantes tóxicos (por exemplo, liberação de histamina em envenenamento por determinadas espécies de peixes), ou substâncias farmacológicas contidas nos alimentos (por exemplo, tiramina em queijos envelhecidos), as quais podem afetar a maioria dos indivíduos sadios quando oferecidas em doses suficientemente elevadas (5).

Aversões Alimentares podem mimetizar reações de Intolerância Alimentar, porém, elas costumam não ser reproduzíveis quando se realiza um teste "cego" do alimento a ser ingerido e ao qual se suspeitava haver Intolerância (6).

Resumidamente, as reações adversas (Hipersensibilidades) - Intolerâncias Alimentares ou AA – podem ser classificadas em:

1- Intolerância/Hipersensibilidade Não Alérgica

2- Alergia Alimentar/Hipersensibilidade Alérgica

Mediada por IgE

• Não Mediada por IgE

• Mistas

3- Reações Tóxicas

4- Aversão Alimentar

Hipersensibilidade alérgica aos alimentos – AAs - necessariamente envolvem mecanismos imunológicos em reação a uma ou mais determinada proteína e podem ser divididas em 3 tipos fundamentais, a saber (7):

1- Mediadas por IgE (hipersensibilidade imediata) (Figura 2); admite-se que as reações de alergia mediadas por IgE sejam responsáveis por 60% dos casos.
Figura 2- Lesões de urticária gigante provocadas por AA (ingestão de camarão). Notar as lesões eritemato-papulosas disseminadas no tronco do paciente.
2- Não mediadas por IgE (Figura 3):


a) hipersensibilidade tardia ou celular;


b) formação de imunecomplexos e vasculite.

Figura 3- Paciente portador de alergia APLV e da soja apresentando quadro de diarréia crônica com síndrome de má absorção, levando a perda de peso e parada do ritmo de crescimento. Notar a nítida diminuição do tecido celular sub-cutâneo, a atrofia da musculatura da região glútea e raiz das coxas, além da distensão abdominal provocada pela flacidez da musculatura do abdome.
3- Mistas, quando ambos os mecanismos estão presentes (Figura 4).
Figura 4- Material de biópsia do intestino delgado de um paciente portador de gastroenteropatia eosinofílica. Observar a atrofia vilositária associada a intenso infiltrado inflamatório linfo-plasmocitário e eosinofílico na lâmina própria da mucosa jejunal.
As reações mediadas por IgE tendem a surgir dentro de segundos ou minutos após a ingestão do alimento alergênico, ao passo que AA que tarda dias ou semanas para se manifestar é mais provável que não seja mediada por IgE. AA pode afetar vários sistemas do organismo e os mais freqüentemente envolvidos são os tratos digestivo e respiratório, e a pele. Manifestações de APLV podem afetar todos os segmentos do trato digestivo, a saber: esôfago, estômago, intestino delgado, colo e reto (8).
Alergias Alimentares apresentam sua maior prevalência durante os primeiros anos de vida e afetam cerca de 6% das crianças menores de 3 anos de idade. Está bem estabelecido que a causa mais freqüente de AA é a APLV. Aproximadamente 2,5% dos recém-nascidos demonstram reações de APLV durante o primeiro ano de vida. Muito embora a APLV seja uma enfermidade transitória, ainda assim, em torno de 80% dos pacientes afetados podem manter-se alérgicos além do primeiro ano de vida. Por outro lado, a maioria das crianças perde sua hipersensibilidade (adquire tolerância) aos vários alimentos alergênicos entre os 3 e os 5 anos de vida. Lactentes que sofrem de APLV e Soja, cuja reação imunológica não é mediada por IgE, geralmente passam a ser tolerantes a estes alimentos durante o segundo ano de vida. Aqueles lactentes que sofrem de AA (leite de vaca, soja, ovos, etc.), cuja reação imunológica é mediada por IgE tornam-se tolerantes a estes alimentos um pouco mais tarde (85% destas crianças por volta dos 5 anos de idade) (9-10-11).

Antes da década de 1950 a incidência descrita de APLV durante o primeiro ano de vida era muito baixa, aproximadamente 0,1 a 0,3%. Desde então, as estimativas da incidência da APLV aumentaram significativamente e tem variado entre 1,8 a 7,5%, dependendo dos critérios diagnósticos utilizados e da elaboração dos desenhos metodológicos das pesquisas. Indiscutivelmente, APLV é a causa de AA mais comumente confirmada entre lactentes e sua incidência no primeiro ano de vida, diagnosticada em ensaios clínicos prospectivos bem conduzidos, varia de 2 a 3%, e, em seguida vem a alergia à proteína da soja em 0,8% dos casos. É importante salientar que manifestações clínicas reproduzíveis de APLV têm sido relatadas em aproximadamente 0,5% dos lactentes em aleitamento natural exclusivo (12).

Crianças portadoras de afecções atópicas tendem a apresentar maior prevalência de AA; aproximadamente 35% das crianças portadoras de dermatite atópica moderada ou grave sofrem de AA mediada por IgE (Figura 5), e, cerca de 6% das crianças que sofrem de asma apresentam sibilância respiratória induzida por alimentos (13).

Figura 5- Lesão de dermatite eczematosa retroauricular em paciente com APLV e soja.
Com o objetivo de avaliar a percepção dos pais a respeito de possíveis reações adversas causadas pelo leite de vaca, Eggesbo e cols., em 2011, na Noruega, realizaram uma investigação clínica acompanhando um grupo de 3.623 crianças desde o nascimento até que completassem 2 anos de idade, através da aplicação de questionários semestrais. Os autores detectaram uma prevalência de APLV de 7,5% aos 12 meses, 5% aos 24 meses e uma incidência cumulativa de 11,6%, demonstrando, assim, a importância da percepção dos pais quanto à suspeita da existência de reações adversas ao leite de vaca e a necessidade de se estabelecer procedimentos diagnósticos apropriados (14).
Referências Bibliográficas:
1. Cox, H., J Pediatr Gastroenterol Nutr 2008; 47:S45-8.
2. Venter, C. e cols., J Allergy Clin Immunol 2006; 117: 1118-24.
3. Johansson, S. G. e cols., J Allergy Clin Immunol 2004; 113: 832-6.
4. Du Toit, G. e cols., Pediatr Allergy Immnunol 2009; 20: 309-19.
5. Sicherer, S. H. e cols., J Allergy Clin Immunol 2004; 114: 118-24.
6. Kneepkens, C. M. F. e cols., Eur J Pediatr 2009; 168; 891-96.
7. García-Ara, C. e cols., J Allergy Clin Immunol 2001; 107: 185-90.
8. Husby, S., J Pediatr Gastroenterol Nutr 2008; 47: S49-52.
9. Kneepkens, C. M. F. e cols., Eur J Pediatr 2009; 168: 891-96.
10. Pereira, B. e cols., J Allergy Clin Immunol 2005; 11: 884-92.
11. Johansson, S.G. e cols., Allergy 2001; 56:813-24.
12. Sampson, H.A., J Allergy Clin Immunol 2004; 113:805-19.
13. Spergel, J. M. e cols., J Allergy Immunol 2003; 112: S118-27.
14. Eggesbo, M. e cols., Pediatr Allergy Immunol 1999; 10: 122-32


No nosso próximo encontro continuarei a discutir este tema tão atual e fascinante.

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