quinta-feira, 24 de março de 2011

Alergia Alimentar e Constipação Intestinal: uma coexistência que se apresenta como mais um desafio para se estabelecer o diagnóstico diferencial

Introdução

A coexistência de Alergia Alimentar e Constipação, por meio de um mecanismo imunologicamente mediado, foi inicialmente aventada por Chin e cols. (Br Med J 1983; 287, 1593), e posteriormente reforçada por Iacono e cols. (J Pediatr 1995; 126: 34-9) e Iacono e cols. (N Engl Med J 1998; 339: 1100-4). No Brasil, até onde meu conhecimento alcança, a primeira publicação atribuindo a Constipação como manifestação clínica de Alergia Alimentar se deve ao nosso grupo da Gastropediatria da Escola Paulista de Medicina, Fagundes-Neto e cols. (Pediatr Allergy and Immunology 2001; 12: 339-42). Mais recentemente, Carroccio e cols. (Scand J Gastroenterol 2005; 40: 33-42) descreveram um modelo de proctite causando constipação devido a Intolerância Alimentar, e, em seguida, Iacono e cols. (Eur J Gastroenterol Hepatol 2006; 18: 143-50) estabeleceram uma relação entre Constipação e Intolerância Alimentar com a descrição de lesões histológicas e alterações na manometria ano-retal, as quais foram revertidas com a eliminação do leite de vaca e derivados da dieta. Como se pode depreender são escassos os trabalhos disponíveis na literatura médica a respeito deste tema pelas dificuldades em se conseguir caracterizar com segurança esta inter-relação, posto que os meios diagnósticos existentes ainda não sejam plenamente confiáveis para sua confirmação. Além disso, a prevalência de Constipação Crônica Idiopática na população pediátrica varia de 3 a 16%, sem que se saiba qual ou quais os precisos mecanismos fisiopatológicos envolvidos nesta manifestação clínica e mesmo qual a abordagem terapêutica mais eficaz para resolver o problema.

No número de agosto de 2010 do Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition, o grupo de Bilbao, Espanha, foi publicado mais um artigo envolvendo a associação de Intolerância ao leite de vaca e Constipação Crônica na infância, o qual a seguir passo a sumarizar: “Cow’s-Milk-Free Diet as a Therapeutic Option in Childhood Chronic Constipation”, Juan Carlos Vitoria e cols. (J Pediatr Gastoentrol and Nutr 2010; 51: 171-76).
O objetivo do presente estudo foi descrever a história clínica das crianças com constipação crônica e avaliar a utilidade da introdução de uma dieta isenta de leite de vaca e derivados como uma opção terapêutica.

Pacientes e Métodos
Um grupo de crianças com idades que variaram de 6 meses a 14 anos encaminhadas a um serviço terciário de gastroenterologia pediátrica e que preenchiam os critérios de Roma III para o diagnóstico de constipação crônica foram avaliadas para ingressar no estudo. Sessenta e nove crianças que preencheram totalmente os critérios de inclusão foram consideradas elegíveis para participar do estudo.

A consistência das fezes foi avaliada por meio da escala semi-quantitativa de Bristol, a saber: 1- fezes muito endurecidas; 2-fezes endurecidas e muito grandes; 3- fezes normais; 4- fezes amolecidas; 5- fezes líquidas.

Desenho do Estudo
No momento da primeira consulta todos os pacientes estavam consumindo leite de vaca e/ou produtos lácteos. O estudo foi organizado em 4 fases cujo esquema está representado na Figura 1. A primeira fase teve a duração de 1 semana, enquanto que as outras 3 fases tiveram a duração de 3 semanas.
Figura 1- Desenho do estudo: CM = leite de vaca; CM-free diet: dieta isenta de leite de vaca.

A constipação foi considerada como resolvida no caso da criança preencher os seguintes requisitos: a freqüência de 3 ou mais evacuações por semana sem utilização de laxantes ou enemas evacuatórios, e, também, as evacuações deveriam ser isentas de desconforto, dor e irritabilidade.

Ao término do estudo as crianças classificadas como Não Respondedoras (NR) à dieta isenta de leite de vaca e derivados foram recomendas a reutilizar o leite de vaca e derivados na dieta; as crianças classificadas como Respondedoras Indeterminadas (RI) continuaram a receber leite de vaca e derivados na dieta; as crianças classificadas como Respondedoras (R) foram inicialmente mantidas em dieta isenta de leite de vaca e derivados e passaram a receber fórmula de soja. Para estas crianças foi recomendada a introdução gradualmente progressiva de pequenas quantidades de produtos lácteos para que se pudesse determinar qual a quantidade de leite e derivados elas seriam capazes de tolerar.

Os pais dos pacientes receberam um notebook e foram solicitados a anotar os seguintes dados ao final da semana de cada uma das fases do estudo: fase I, número e consistência de cada evacuação, uso de laxantes ou enemas evacuatórios, ingestão de leite de vaca e produtos lácteos, vegetais, frutas e cereais; fase II, número e consistência de cada evacuação, uso de laxantes ou enemas evacuatórios, ingestão de leite de vaca e produtos lácteos, vegetais, frutas e cereais; fase III, número e consistência de cada evacuação; fase IV, número e consistência de cada evacuação.
Uma amostra de sangue foi obtida de cada criança durante a fase I para determinação do número de eosinófilos e os níveis séricos das Imunoglobulinas (IGA, IgM, IgG e IgE). Valores de IgE específica contra as proteínas do leite de vaca e anticorpo antitransglutaminase tecidual também foram determinados.

Investigação imunológica que envolveu análise citométrica de fluxo dos linfócitos periféricos para determinar o número total de leucócitos (CD45), linfócitos T (CD3), linfócitos T helper (CD4), linfócitos T citotóxicos (CD8), células B (CD19) e células natural killers (CD16).

Resultados
As principais características clínicas dos pacientes ao ingressar no estudo estão descritas na Tabela 1.
Tabela 1- Características clínicas dos 69 pacientes.

Em 35 (51%) crianças a constipação foi curada durante a utilização de dieta isenta de leite de vaca e derivados na fase II. Trinta e quatro (49%) crianças não responderam satisfatoriamente à dieta isenta de leite de vaca e derivados (grupo NR), e em 27 das 35 crianças que responderam satisfatoriamente à eliminação do leite de vaca e derivados durante a fase II, ocorreu recidiva da constipação quando foi reintroduzido leite de vaca e derivados na dieta durante a fase III, mas a qual foi novamente curada em todas as 27 crianças quando novamente o leite de vaca e derivados foram eliminados da dieta, durante a fase IV (grupo R) (Figura 2).
Figura 2- Resposta clínica dos pacientes à dieta isenta de leite de vaca e derivados.

Neste grupo (R) a constipação desapareceu entre 1 e 5 dias após o início da dieta isenta de leite de vaca e reapareceu entre 2 e 5 dias após a reintrodução do leite de vaca na dieta. Oito crianças foram catalogadas como RI devido ao seu comportamento errático durante todo o estudo.
Não foram encontradas diferenças estatisticamente significantes entre os grupos R e NR no que diz respeito às investigações imunológicas realizadas.

Conclusão

Nesta presente pesquisa pode-se demonstrar que 39% das crianças com constipação crônica inequivocamente se beneficiaram com a eliminação do leite de vaca e derivados da dieta, o que dá sustentação à hipótese de que o leite de vaca e derivados desempenham um importante papel em muitas crianças que sofrem de constipação crônica. Alguns autores entendem que a associação de constipação e ingestão de leite de vaca se dá por um excesso de consumo de produtos lácteos, os quais têm baixos resíduos dietéticos, em detrimento da ingestão de vegetais e frutas, alimentos que apresentam altas taxas de resíduos. Entretanto, no presente estudo, o consumo de produtos lácteos e de fibras foi similar em todas as crianças investigadas, independentemente do resultante final, R ou NR, o que sugere que a ingestão de produtos lácteos e de fibras não é capaz de prever o sucesso ou insucesso da resposta à eliminação do leite de vaca e derivados da dieta.

É importante enfatizar que o fato de a constipação ter sido curada entre 1 e 5 dias após a eliminação do leite de vaca da dieta, e que apresentou recidiva neste mesmo período de tempo após sua reintrodução na dieta das crianças, sugere a participação de um mecanismo alérgico de efeito retardado. E, em verdade, se for provado que a constipação é uma forma de apresentação clínica de alergia alimentar, ela deve ser classificada como um sintoma de hipersensibilidade retardada. Desta forma, como se sabe que a maioria das reações alérgicas do tipo retardado não são mediadas pela IgE, depreende-se, portanto, que os parâmetros imunológicos que caracterizam a reação de hipersensibilidade imediata não devem estar presentes nesta situação clínica. Nossos resultados parecem descartar um mecanismo mediado por IgE, porém, não foi possível alcançar qualquer informação conclusiva a respeito de outros possíveis mecanismos imunológicos para a ocorrência da constipação nestas crianças que apresentaram sensibilidade ao leite de vaca.

Comentários

Em minha opinião trata-se de um estudo bem conduzido e que inegavelmente acrescenta mais informações a algo que, de forma escassa na literatura, já foi por nós e outros autores verificado. O maior problema na elaboração de um projeto de pesquisa desta natureza é, por um lado, a inexistência de testes sorológicos definitivamente confiáveis para se imputar outros mecanismos imunológicos existentes, afora aqueles mediados por IgE, estejam disponíveis ao nosso alcance, o que nos obriga a lançar mão dos testes de eliminação e provocação. Estes testes são de interpretação até certo ponto bastante subjetiva, e que, portanto, seus resultados encontrados variam consideravelmente de investigador para investigador. Por outro lado, como a prevalência de constipação funcional crônica é queixa extremamente freqüente nos consultórios do gastropediatra, nas mais variadas faixas etárias, nem sempre é exeqüível, na prática clínica diária, propor as medidas aplicadas neste estudo, por serem extremamente laboriosas e de longo tempo de execução para se chegar a um resultado final (no presente estudo foram despendidas pelo menos 10 semanas). De qualquer forma este estudo nos brinda inúmeras informações bastante úteis, e, ao mesmo tempo, nos lança mais um enorme desafio para discernirmos quais das crianças com constipação crônica irão se beneficiar da eliminação do leite de vaca e derivados da dieta. A decisão de se seguir pelo caminho aqui proposto, deve, a meu ver, ser considerado caso a caso, não há como se adotar uma conduta geral rotineiramente.

No nosso próximo encontro continuarei a apresentar algum tema de grande interesse para a nossa especialidade.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA) (AIDS): ainda um sério problema de saúde pública universal (3)

Abaixo transcrevo os principais tópicos da discussão do artigo publicado na revista Arquivos de Gastroenterologia 43; 310-15, 2006, intitulado:

ASPECTOS FUNCIONAIS, MICROBIOLÓGICOS E MORFOLÓGICOS INTESTINAIS EM CRIANÇAS INFECTADAS PELO VÍRUS DA MUNODEFICIÊNCIA HUMANA

Christiane Araujo Chaves LEITE, Regina Célia de Menezes SUCCI, Francy Reis da Silva PATRÍCIO e Ulysses FAGUNDES-NETO
DISCUSSÃO

Este estudo foi realizado em período que antecedeu o advento da terapia anti-retroviral potente (HAART), no qual se dispunha apenas de monoterapia ou uso combinado de dois anti-retrovirais análogos de nucleosídios e, portanto, pequeno impacto clínico, imunológico e virológico na evolução da infecção pelo HIV. Sendo assim, a presente amostra deve representar condição muito próxima à observada na história natural da infecção pelo HIV nas crianças. Esta observação é importante, pois, ao se compararem biópsias de intestino de pacientes HIV positivos entre 1995 e 1998, período em que foi introduzida a HAART, Monkemuller et al. constataram declínio significativo das infecções oportunistas gastrointestinais, mesmo nos indivíduos com CD4 baixo. De modo diverso, estudo conduzido na região sul do Brasil em 1999, envolvendo 104 crianças infectadas pelo HIV e já em uso de HAART, identificou a presença de Cryptosporidium em 31,73% das amostras de fezes analisadas (Figura 1).

Figura 1- Material de biópsia de intestino delgado evidenciando atrofia vilositária sub-total e a presença de microorganismos de Cryptosporidium firmemente aderidos à superfície epitelial dos enterócitos.

Este mesmo estudo, no entanto, atribui ao uso da HAART a escassez de alteração no teste da D-xilose, observada em apenas 7,7% das crianças. Outro estudo envolvendo coorte de 671 pacientes infectados pelo HIV, entre 1995 e 1999, mostrou que 47,7% apresentavam má absorção de D-xilose, 38,9% tinham diarréia e que em 12,2% foram identificados agentes patogênicos entéricos, sendo encontrado Cryptosporidium em apenas uma amostra de fezes. A identificação de microorganismos patogênicos nas fezes não tinha associação com a ocorrência de diarréia. Esse estudo concluiu que a alteração da função gastrointestinal é também problema comum após o advento da HAART, tendo início precoce na evolução da infecção pelo HIV, mesmo na ausência de diarréia. A explicação para resultados tão distintos enfatiza a complexidade da interação de fatores sociodemográficos, exposição a agentes patogênicos diversos e estágio da infecção pelo HIV capazes de afetar a função gastrointestinal. Embora com casuística pequena e num contexto de disponibilidade de arsenal terapêutico diferente, os resultados da presente série se assemelham aos reportados na literatura. Três dos 11 pacientes apresentavam diarréia. No entanto, os dois microorganismos oportunistas identificados, Cryptosporidium e Mycobacterium avium intracellulare, não estavam associados à ocorrência de diarréia. Ainda nesta casuística, o teste da D-xilose esteve abaixo do nível normal nos nove pacientes em que foi realizado, independentemente da ocorrência de diarréia como sintoma de má absorção, fato também relatado por outros autores (Figura 2).

Figura 2- Esporos de Mycobacterium avium intracellulare disseminados na luz do intestino delgado.

O paciente em que se identificou Mycobacterium avium intracellulare teve a D-xilose de valor mais baixo, ainda que com apenas grau II de atrofia de vilosidades no fragmento de intestino delgado obtido por biópsia. O encontro de má absorção da D-xilose, mesmo com alterações histológicas mínimas da mucosa intestinal, também já foi escrito, podendo os resultados alterados representar uma predição da ocorrência da enteropatia pelo HIV (Figura 3).

Figura 3- Material de biópsia de intestino delgado infectado pelo Mycobacterium avium intracellulare.
Knox et al. verificaram em sua casuística que a má absorção da D-xilose ocorreu em indivíduos sem outros sinais de má absorção, tais como diarréia, baixos níveis de vitamina B12 e de folatos no sangue ou perda de gordura nas fezes. Tais dados seriam sugestivos de que as alterações precoces determinadas pela enteropatia pelo HIV sejam freqüentes, porém não detectáveis, exceto por absorção alterada da D-xilose.

Desnutrição, na presente casuística, esteve presente em todas as crianças, na maioria em sua forma grave (III grau), quando consideradas as menores de 5 anos, denotando o impacto da infecção pelo HIV nesses pacientes. A avaliação das duas crianças maiores de 5 anos evidencia agravo nutricional de longa duração, tendo em vista o comprometimento da estatura de ambos. Não se pode desprezar o efeito que o meio ambiente adverso, ao qual essas crianças são submetidas, exerce nesse contexto, pois algumas delas identificavam-se perfeitamente na descrição da síndrome que Fagundes-Neto et al. denominaram de enteropatia ambiental, em que são observados graus variáveis de atrofia das vilosidades e infiltrado linfoplasmocitário do córion, à semelhança dos resultados do estudo presente. A desaceleração do crescimento ponderal e de estatura parece ser a alteração mais comum nas crianças infectadas pelo HIV e é acompanhada por decréscimo preferencial da gordura livre ou da massa corporal magra. Podem estar associadas deficiências de vários micronutrientes, alterações neuroendócrinas, infecções do trato gastrointestinal e má absorção de carboidratos, gordura e proteína na gênese desse processo. As crianças infectadas pelo HIV que têm crescimento retardado, apresentam cargas virais mais elevadas quando comparadas com as que têm crescimento normal e a supressão do HIV parece exercer papel favorável na retomada do ganho ponderal e da estatura.

A análise histológica dos fragmentos de intestino delgado no presente estudo mostrou graus variados de atrofia das vilosidades, alteração da relação altura da vilosidade versus profundidade da cripta nos oito casos em que a biópsia permitiu essa avaliação, infiltrado inflamatório crônico com predomínio de células linfomononucleares na maioria das amostras e aumento de linfócitos intra-epiteliais na metade dos casos analisados. Essas alterações não estavam correlacionadas com ocorrência de diarréia, nem com a presença de microorganismos ou alteração do teste da D-xilose, conforme descrito anteriormente. Inclusive, o paciente com grau mais intenso de atrofia vilositária (grau III/IV) desta casuística, não apresentava diarréia (Figuras 4 & 5).

Figura 4- Material de biópsia do intestino delgado de um paciente portados de AIDS evidenciando uma camada muco-fibrino-leuccocitária recobrindo a superfície epitelial (seta) e também uma solução de continuidade (úlceração) do epitélio do intestino delgado no topo das vilosidades.

Figura 5- Material de biópsia de um paciente portador de AIDS evidenciando atrofia vilositária sub-total com hiplerplasia das glândulas crípticas e intenso infiltrado inflamatório linfo-plasmocitário na lâmina própria.

Este polimorfismo das alterações estruturais do intestino e a nem sempre possível associação com ocorrência de sintomas clínicos, encontro de microorganismos e provas de absorção alteradas levou a hipótese da enteropatia pelo HIV, pioneiramente sugerida por Kotler et al. e Ullrich et al. em alguns aspectos, com os descritos por Batman et al. em estudo comparativo da morfometria da mucosa jejunal de pacientes infectados pelo HIV residentes em Uganda e Londres. Segundo Marsh este tipo de atrofia com hiperplasia de criptas e atrofia de vilosidades, que pode chegar à mucosa plana, observada também na doença celíaca e em outras enteropatias, seria causado por mecanismos regulados por linfócitos T. Oktedalen et al., estudando 20 pacientes infectados pelo HIV com diarréia, constataram um padrão de má absorção da D-xilose comparável ao observado em pacientes com doença celíaca. No entanto, esse acentuado comprometimento na absorção intestinal não pôde ser explicado pelas alterações observadas pela microscopia de luz dos fragmentos de intestino delgado, isto é, pouca inflamação da mucosa e vilosidades normais.

Nas seis crianças deste estudo, nas quais foi possível fazer a análise morfológica das biópsias retais, destaca-se o encontro de infiltrado linfomononuclear aumentado em todas as amostras e de infiltrado polimorfonuclear neutrófilo em quatro das amostras, caracterizando quadro de infiltrado inflamatório não específico, também descrito na literatura. A presença dos neutrófilos indica atividade da lesão, isto é, fase de reagudização da lesão, já que essas células não ocorrem normalmente na lâmina própria do trato gastrointestinal. Clayton et al. documentaram progressão qualitativa e quantitativa nas alterações vistas na mucosa retal de indivíduos infectados pelo HIV, a qual se correlacionou com a presença e a quantidade do vírus no tecido colônico, sugerindo, além da enteropatia do HIV anteriormente comentada, que a mucosa intestinal poderia constituir local de proliferação e de destruição de linfócitos. Mais recentemente, Monno et al., comparando amostras de HIV obtidas concomitantemente do sangue e de tecido retal, verificaram padrões de resistência aos anti-retrovirais diferentes, dando suporte à idéia de evolução genotípica variável do HIV nos diferentes compartimentos corporais e enfatizando a participação da mucosa intestinal na seleção do genótipo do HIV.

Considerando-se a escassez de informações sobre o trato gastrointestinal em crianças infectadas pelo HIV, os resultados da presente pesquisa contribuem para melhor compreensão da evolução da infecção pelo HIV na faixa etária pediátrica. Um passo futuro, seria avançar na análise ultra-estrutural para melhor caracterizar a enteropatia do HIV, bem como avaliar o impacto da má absorção intestinal na biodisponibilidade dos medicamentos anti-retrovirais e a busca de estratégias de suporte nutricional específicas para esses pacientes.

No nosso próximo encontro apresentarei um novo tema de grande interesse da especialidade.

terça-feira, 1 de março de 2011

Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA) (AIDS): ainda um sério problema de saúde pública universal (2)

Conforme anteriormente mencionado transcrevo abaixo os pontos mais importantes do artigo publicado na revista Arquivos de Gastroenterologia 43; 310-15, 2006, o qual descreve nossa experiência ao investigar a função digestivo-absortiva de crianças portadoras de AIDS. Vale ressaltar que este artigo é um subproduto da tese de Mestrado da Dra. Christiane A. C. Leite, de quem fui Orientador, apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, e que foi oficialmente aprovada.


ASPECTOS FUNCIONAIS, MICROBIOLÓGICOS E MORFOLÓGICOS INTESTINAIS EM CRIANÇAS INFECTADAS PELO VÍRUS DA MUNODEFICIÊNCIA HUMANA
Christiane Araujo Chaves LEITE1, Regina Célia de Menezes SUCCI2, Francy Reis da Silva PATRÍCIO3 e Ulysses FAGUNDES-NETO4
Trabalho realizado na Disciplina de Gastroenterologia do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina, São Paulo, SP.
1 Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE; 2 Disciplina de Infectologia Pediátrica, 3 Departamento de Patologia, 4 Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica da Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina, São Paulo, SP.

Tendo em vista a importância do impacto das manifestações gastrointestinais da infecção pelo HIV em crianças e a escassez de informações a esse respeito em nosso meio, o presente estudo teve por objetivo avaliar a função absortiva, as características morfológicas e microbiológicas intestinais, nesse grupo de pacientes.

CASUÍSTICA E MÉTODOS
Casuística

Foram selecionadas aleatoriamente, de forma prospectiva e consecutiva, entre agosto de 1994 e maio de 1995, 11 crianças infectadas pelo HIV, menores de 13 anos, pertencentes às categorias clínicas A, B ou C da classificação proposta pelos Centers for Diseases Control and Prevention (CDC) no Ambulatório de AIDS da Disciplina de Infectologia do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina (UNIFESP – EPM) e na Enfermaria e Ambulatório do Núcleo de Nutrição, Alimentação e Desenvolvimento Infantil (NUNADI) do Centro de Referência da Saúde da Mulher da Secretaria da Saúde de São Paulo, em São Paulo, SP. Foram constituídos dois grupos, a saber: grupo I – cinco crianças com história de pelo menos um episódio diarréico nos 30 dias que antecederam sua inclusão no estudo; grupo II - seis crianças, sem relato de ocorrência de diarréia no mesmo período. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNIFESP-EPM, sendo obtido consentimento escrito e esclarecido dos pais ou responsáveis legais pelas crianças. Os hemofílicos soropositivos para o HIV só foram incluídos no estudo quando havia indicação clínica absoluta para realização de endoscopia digestiva alta.

Na admissão ao estudo foi preenchido um questionário padronizado com informações clínicas e epidemiológicas, seguido pela aferição do peso e estatura para classificação do estado nutricional segundo os critérios de Gomez modificados por Bengoa e Waterlow modificados por Batista et al., tendo como referência de normalidade as tabelas de percentis do National Center for Health Statistics (NCHS).

INVESTIGAÇÃO LABORATORIAL
Teste de absorção da D-xilose
Após jejum de 4 horas os pacientes receberam 0,5 g de D-xilose (diluída em solução aquosa a 10%) por kg de peso, até um máximo de 25 g. Uma hora após sua administração, foi coletada amostra de sangue para determinação da D-xilose sérica pelo método colorimétrico, de acordo com técnica descrita por Roe e Rice (26). Valores menores que 25 mg/dL foram considerados como indicativos de má absorção.

Cultura e parasitológico de fezes
As amostras de fezes foram cultivadas nos meios SS, BEM e tetrationato para identificação de Escherichia coli, Salmonella e Shigella e nos meios Lowenstein Jensen e Stonebrink para identificação de micobactérias. A pesquisa de micobactérias também foi realizada por baciloscopia, usando-se a coloração de Ziehl-Nielsen. Rotavírus foi pesquisado pelos métodos imunoenzimático e de aglutinação no látex. A pesquisa de parasitas e helmintos foi realizada pelos métodos de Hoffman, centrífugo de sedimentação em formol-éter e de Rugai. Cryptosporidium foi investigado pelo método de Ziehl-Nielsen.

Biópsia de intestino delgado
A biópsia de intestino delgado foi realizada com utilização de uma sonda flexível de polietileno acoplada a uma cápsula de Watson na extremidade distal ou através de pinça endoscópica, nos casos em que o procedimento por cápsula não foi possível ser realizado ou com indicação clínica prévia de realização de endoscopia digestiva alta. Os fragmentos obtidos foram submetidos as colorações de hematoxilina-eosina, Giemsa, PAS, Prata e Ziehl-Nielsen e, nas amostras de tamanho satisfatório, foi realizada a pesquisa de micobactérias em tecido. A interpretação dos fragmentos por microscopia óptica foi baseada na relação entre a altura das vilosidades e a profundidade das criptas e na intensidade do infiltrado inflamatório da lâmina própria, segundo critérios modificados de Shenck e Klipstein. Os parâmetros histológicos avaliados foram os seguintes:

a) altura ou comprimento da vilosidade da abertura da cripta até o topo da vilosidade;

b) comprimento ou profundidade da cripta da abertura até o fundo da cripta que repousa sobre a muscular da mucosa. A relação entre a altura da vilosidade e a profundidade da cripta foi avaliada subjetivamente do seguinte modo: grau I – relação entre 3 a 2 para 1: sem atrofia ou em grau muito leve, praticamente dentro da normalidade; grau II – relação 1 para 1: atrofia leve; grau III - já existe inversão da relação vilosidade/cripta, isto é, cripta pouco mais longa que a vilosidade: atrofia moderada, também chamada atrofia parcial; grau IV – mucosa plana por intensa atrofia das vilosidades, também chamada atrofia subtotal;

c) infiltrado celular da lâmina própria, constituído por linfócitos, plasmócitos e eosinófilos, avaliado em graus leve ou normal, moderado e intenso. Polimorfonucleares neutrófilos, que não existem na mucosa intestinal normal, quando ocorreram, foram também classificados em graus leve, moderado e intenso;

d) linfócitos intra-epiteliais, que ocorrem normalmente no intestino delgado em número de até 30 por 100 enterócitos, foram avaliados em graus de aumento leve (30 a 40 por 100 enterócitos), moderado (entre 40 e 50 por 100 enterócitos) e intenso (acima de 60 por 100 enterócitos).

Biópsia retal
A biópsia retal foi realizada com a utilização da cápsula de Rubin. Os fragmentos obtidos foram submetidos as colorações de hematoxilina-eosina, Giemsa, PAS, Prata e Ziehl-Nielsen e, nas amostras de tamanho satisfatório, foi realizada a pesquisa de micobactérias no tecido. A avaliação morfológica dos fragmentos de intestino grosso foi realizada por microscopia óptica, de acordo com os critérios de Morson, considerando-se a análise da integridade do epitélio superficial (erosões), das glândulas e o infiltrado de linfócitos, plasmócitos e eosinófilos nos graus de intensidade leve, moderado e intenso.

RESULTADOS

A idade das crianças variou de 5 a 149 meses (mediana de 24 meses), sendo seis do sexo feminino e cinco do sexo masculino. Nos 30 dias que antecederam a inclusão no estudo, cinco crianças haviam apresentado diarréia, das quais três já assim se mostravam desde o início da investigação. Outros sintomas digestivos referidos foram vômitos (4/11), disfagia (1/11) e dor abdominal (1/11). Os medicamentos usados foram: zidovudina (9/11), didanosina (3/11), sulfametoxazol-trimetoprim (10/11), imunoglobulina intravenosa (2/11), nistatina (2/11), azitromicina (1/11) e associação de rifampicina, isoniazida e pirazinamida (1/11). Das 11 crianças, 9 foram infectadas pelo HIV por transmissão vertical, 1 por transfusão de hemoderivados (hemofílico) e 1 permanecia com modo de transmissão não esclarecido.

Todas as 11 crianças apresentavam algum grau de desnutrição energético-protéica, sendo 6 de III grau, 2 de II grau e 1 de I grau. Pelos critérios de Waterlow modificados por Batista et al. aplicado para as duas crianças maiores de 5 anos, houve um caso de desnutrição pregressa e um de desnutrição crônica.

A coprocultura, realizada em 7 dos 11 pacientes, não identificou bactérias enteropatogênicas. Pesquisa de Rotavírus foi negativa nas seis crianças em que foi realizada, e o exame protoparasitológico também foi negativo nas oito crianças das quais foram obtidas amostras adequadas de fezes. Cryptosporidium foi identificado em 1 e o resultado foi duvidoso em outro dos 10 exames realizados. Dos cinco casos em que foi possível pesquisar, Mycobacterium avium intracellulare foi identificado em apenas uma amostra de fezes. A pesquisa de Mycobacterium avium intracellulare nos fragmentos de biópsia resultou negativa nas seis amostras investigadas, inclusive na do paciente em que este microorganismo foi identificado nas fezes.

A prova de absorção da D-xilose foi realizada em 9 dos 11 pacientes, com valores variando de 8,9 a 24,4 mg/dL, média de 15,6 mg/dL, mediana de 14,2 mg/dL e desvio padrão de 5 mg/dL.

Dos 11 fragmentos de biópsias de intestino delgado obtidos, 1 foi excluído da análise por ser tecnicamente inadequado para exame (Tabela 1).


Quanto à relação entre altura das vilosidades e profundidade das criptas, os resultados foram os seguintes: três com atrofia de vilosidades grau I (Figura 1), dois com grau I/II, um com grau II, um com grau II/III e um com grau III/IV. Em dois casos não foi possível a análise deste parâmetro, pois as amostras eram superficiais. Linfócitos intra-epiteliais foram observados nos 10 fragmentos analisados (Figura 1), estando aumentados em 5, sendo 2 em quantidade leve, 2 em quantidade moderada e 1 em quantidade intensa.


O infiltrado linfoplasmocitário da lâmina própria estava aumentado em 100% das amostras analisadas (10/10) e foi graduado em moderado (4/10), intenso (5/10), como se pode observar na Figura 2-A, e leve (1/10).



O infiltrado de polimorfonucleares neutrófilos da lâmina própria estava aumentado em 7 das 10 amostras analisadas. Destas, três em grau leve, quatro em grau moderado e um em grau intenso. Em apenas um caso foi observada presença de microorganismos em forma de bastões, similares a bactérias, em meio ao muco que recobria o epitélio. Nesta amostra, uma crosta fibrino-leucocitária no topo da vilosidade fez supor lesão ulcerada.

Foram realizadas oito biópsias retais e, destas, seis se prestaram à análise histopatológica. Quanto à integridade epitelial, em 100% (6/6) dos casos mostrava-se íntegra. O infiltrado linfoplasmocitário estava aumentado em todos os casos, variando de grau leve (3/6), como se observa na Figura 2-B, moderado (2/6) e intenso (1/6).

A presença de infiltrado de polimorfonucleares neutrófilos foi observada em quatro casos, sendo de grau leve em três e intenso em um (Tabela 2 e Figura 3).

No nosso próximo encontro apresentarei a rica discussão deste excelente trabalho de pesquisa.