terça-feira, 28 de setembro de 2010

Diarréia Persistente: uma guerra cujo campo de batalha é o lúmen intestinal (2)

Histórico

Diarréia Persistente (DP) foi primeiramente descrita por Avery e cols. (Pediatrics 41:712-22, 1968) sob a denominação de Diarréia Intratável, o que conferia a esta entidade clínica uma conotação absolutamente fatalista, indicando um prognóstico praticamente fechado dada a gravidade do quadro clínico, em virtude da extrema limitação dos recursos terapêuticos existentes à época (vale lembrar que o emprego da nutrição parenteral somente passou a estar disponível a partir da década de 1970), em face da inexistência dos conhecimentos fisiopatológicos íntimos do processo diarréico em questão, o que acarretou uma elevada taxa de mortalidade nesta série, em 40% dos casos. Sem dúvida alguma, este trabalho original teve a enorme importância de despertar o interesse dos clínicos e pesquisadores para um grupo de pacientes que pertenciam a uma faixa etária precoce da vida, cujas complicações nutricionais advindas do prolongamento da diarréia e da má absorção dos nutrientes da dieta, mostravam-se extremamente graves com alto risco de morte (Figura 1).
FIgura 1- A triste realidade do resultado final da doença diarréica nos bolsões de miséria que ainda existem no nosso país e nos demais países em desenvolvimento.

Hyman e cols. (J. Pediatrics 78: 17-19, 1971) introduziram o termo Diarréia Protraída (Prolongada) levantando a suspeita de que esta síndrome seria provocada por intolerância à proteína do leite de vaca e relataram a experiência adquirida com a utilização inicial de Nutrição Parenteral Total (NPT), para logo a seguir utilizar dieta à base de Hidrolisado Protéico extensivamente hidrolisado. Lloyd-Still e cols. (Am. J. Dis. Child. 125: 358-64, 1973) descreveram intensas alterações morfológicas do intestino delgado à microscopia óptica comum mas, embora não tenham identificado a etiologia do processo diarréico, demonstraram que estas lesões eram reversíveis quando utilizavam NPT por tempo prolongado, com jejum oral absoluto. Estes achados foram posteriormente confirmados por Banister e cols. (Acta Paediatr. Scand. 64: 732-40, 1975) bem como por Greene e cols. (J. Pediatr. 78: 695-704, 1975) os quais também obtiveram excelentes resultados com o emprego da NPT. Por sua vez, Larcher e cols. (Arch. Dis. Child. 52: 597-605, 1977) descreveram à época a maior casuística de DP dando especial ênfase à etiologia e propuseram medidas dietéticas para o manuseio dos pacientes, eliminando as fórmulas lácteas, e introduziram uma dieta líquida à base de carne de frango, com êxito indiscutível. Este trabalho teve o grande mérito, naquela ocasião, de servir como exemplo de conduta dietética alternativa de sucesso para os mais diversos países do globo terrestre, em especial para os países em desenvolvimento, que não dispunham de fórmulas à base de hidrolisado protéico, pois se tratava de uma fórmula de baixo custo e de fácil elaboração. Fagundes-Neto e cols. (Arquivos de Gastroenterol 16: 205-8, 1975) descreveram o caso de um paciente com DP causada por uma cêpa de Escherichia coli O111 que provocou invasão da mucosa do intestino delgado (Figuras 2 – 3 – 4 & 5) e acarretou intolerância alimentar múltipla inclusive aos monossacarídeos da dieta. O paciente foi submetido à NPT e após 2 semanas de internação voltou a tolerar alimentação por via oral e também demonstrou recuperação da lesão morfológica do intestino delgado (Figura 6).


Figura 2- Microfotografia do material de biópsia do intestino delgado do paciente evidenciando nítida atrofia vilositária sub-total e aumento do infiltrado inflamatório na lâmina própria.

Figura 3- Microfotografia em maior aumento do material de biópsia do intestino delgado do paciente mostrando a presença de nichos bacterianos firmemente aderidos à superfície epitelial com transformação cuboidal dos enterócitos. Na lâmina própria, logo abaixo da membrana basal nota-se um infiltrado hemorrágico.

Figura 4- Microfotografia em imersão do material de biópsia do intestino delgado do paciente evidenciando nichos bacterianos firmemente aderidos à superfície dos enterócitos, os quais se acham intensamente alterados quanto a sua morfologia.

Figura 5- Microfotografia em imersão do material de biópsia do intestino delgado do paciente evidenciando arrancamento dos enterócitos que se acham totalmente distorcidos e a presença de nichos bacterianos em sua superfície.


Figura 6- Microfotografia do material de biópsia do intestino delgado do paciente após ter cessado a diarréia e normalização da aceitação da dieta por via oral mostrando recuperação morfológica. As vilosidades intestinais ainda se encontram encurtadas evidenciando uma atrofia vilositária parcial mas em nítido processo de recuperação da estrutura morfológica.
Rothbaum e cols. (Gastroenterology 83: 441-54, 1982) demonstraram, por meio da microscopia eletrônica de transmissão, a clássica lesão em pedestal provocada por uma cêpa de Escherichia coli O119 em um grupo de lactentes com DP (Figuras 7 - 8 – 9 & 10).

Figura 7- Vide legenda acima.

Figura 8- Nichos bacterianos de Escherichia coli O 119 firmemente aderidos à superfície dos enterócitos. Nota-se a mesma anormalidade descrita em nossso paciente.

Figura 9- Ultramicrofotgrafia do material de biópsia do intestino delgado evidenciando destruição das microvilosidades e a formação da lesão em pedestal pela bactéria.

Figura 10- Vide legenda acima.

Fagundes-Neto e cols. (J. Pediatr. Gastroenterol. Nutr. 4: 714-22, 1985) descreveram aspectos clínicos e ultraestruturais do epitélio do intestino delgado de lactentes portadores de DP (Figuras 11 – 12 & 13).


Figura 11- Ultramicrofotografia de material de biópsia do intestino delgado de um paciente nosso portador de DP evidenciando profundas alterações estruturais dos enterócitos. As microvilosidades estão achatadas e diminuidas em número; as mitocôndrias estão inchadas e distorcidas e há um aumento significativo dos corpos multivesiculares (mvb) no interior do citoplasma denotando a penetração maciça de proteínas intactas.
Figura 12- Ultramicrofotografia do material de biópsia do intestino delgado de um paciente nosso portador de DP evidenciando as microvilosidades tendendo a formar tufos (setas); no interior do citoplasma observam-se retículos endoplasmáticos preservados (er), bem como as mitocôndrias e inúmeros corpos multivesiculares (mvb).


Figura 13- Ultramicrofotografia do material de biópsia do intestino delgado de um nosso paciente portador de DP em 2 momentos distintos da sua evolução: 1- à esquerda durante o período de estado da doença podem-se observar profundas anormalidades na morfologia do enterócito, havendo destruição das microvilosidades, e no interior do citoplasma não se pode identificar as organelas devido a intensa vacuolização das mesmas; 2- à direita após a recuperação clínica e nutricional evidenciando normalização da estrutura morfológica do enterócito; as microvilosidades se mostram íntegras e as organelas intracitoplasmáticas totalmente identificadas e normalizadas.

Considerando a importância global desta síndrome a Organização Mundial da Saúde, em 1987, após extensa discussão sobre o tema, decidiu expedir um memorando, dando um rótulo diagnóstico para esta síndrome, ao mesmo tempo em que chamava especial atenção para aquelas situações clínicas, as quais presumivelmente tivessem tido uma origem infecciosa e que se perpetuaram por diferentes razões, causando desnutrição e altas taxas de mortalidade.

Enquanto continuo discorrendo sobre a potencial gravidade da DP, nosso sofrido paciente A ainda se encontra na Unidade de Cuidados Intensivos, monitorado em seus sinais vitais e recebendo as reposições hidroeletrolíticas necessárias, para a preservação da sobrevivência, posto que o processo diarréico secretor ainda se mantivesse intenso, devido à infecção causada pela cepa de Escherichia coli O111, associado a um fator osmótico em decorrência a intolerâncias alimentares múltiplas, o que nos obrigou a empregar a NPT por um tempo prolongado (Figuras 14 & 15).

Figura 14- Nosso paciente A lutando pela sobrevivência durante o período de estado da doença sendo monitorado em suas funções vitais.

Figura 15- Nosso paciente A recebendo a atenção médica na UCI ainda em estado crítico de saúde.

No nosso próximo encontro continuarei a descrever os mais diversos aspectos etiológicos, clínicos e laboratoriais desta tão importante síndrome.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Diarréia Persistente: uma guerra cujo campo de batalha é o lúmen intestinal (1)

Introdução

A doença diarréica, a despeito dos consideráveis avanços ocorridos nos conhecimentos dos mais diversos mecanismos fisiopatológicos de ação dos inúmeros agentes enteropatogênicos responsáveis pela infecção entérica e do seu manejo na prática clínica, ainda é responsável por uma significativa proporção de mortes em crianças menores de 5 anos de idade em todo o globo terrestre, em especial, nos denominados países em desenvolvimento (Figuras 1 & 2).
Figura 1- Desenho esquemático das ações fisiopatogênicas dos diferentes agentes enteropatogênicos sobre o trato digestivo.

Figura 2- Capa da revista Time alertando para os riscos de morte causados pela infecção pelas cepas de Escherichia coli enterohemorrágica em especial a O157:H7.

Felizmente as taxas de mortalidade vêm decaindo ao longo dos tempos, desde o início dos anos 1980, quando a diarréia provocava a morte de 4,5 milhões de crianças anualmente para em 2003 ter sido responsável pela morte de 1,6 a 2,3 milhões de crianças abaixo dos 5 anos de idade nos países em desenvolvimento. Em 2008 ocorreram 1,8 milhões de mortes por diarréia o que representa 19% das 10 milhões de mortes ocorridas em crianças menores de 5 anos de idade. Ficou comprovado que 15 países da África e da Ásia foram responsáveis por 78% dessas mortes (Figuras 3 & 4).

Figura 3- Diagrama esquemático do processo evolutivo das perdas hidro-eletrolíticas durante uma infecção entérica que caso não sejam devidamente corrigidas leva ao quadro de desidratação abaixo demonstrado.


Figura 4- Desenho esquemático da terra ressequida e fotografia montada de uma criança desidratada por diarréia grave. Notar o turgor pastoso do tecido celular subcutâneo, os olhos encovados e a mucosa oral sêca.

Desnutrição e diarréia são as mais flagrantes conseqüências de uma verdadeira guerra cujo teatro das ações se dá no interior do intestino. Esta guerra apresenta características altamente dramáticas porque o campo de batalha é totalmente não convencional (o lúmen intestinal) e o inimigo invasor que é invisível (microorganismos enteropatogênicos) coloca à prova toda a capacidade de defesa do hospedeiro sem que haja qualquer previsão de quando o processo irá ocorrer. Portanto, o organismo necessita estar constantemente de prontidão, sempre preparado com todas suas defesas perfeitamente alinhadas, para tentar se proteger de um potencial ataque que pode se dar de forma completamente inesperada. Quando o microorganismo invasor vence a batalha, uma vasta gama de problemas pode ser criada para o hospedeiro, posto que as infecções sintomáticas podem alterar as funções digestivo-absortivas, provocar ruptura da barreira de permeabilidade intestinal, e mesmo à depleção hídrica e salina do paciente causando desidratação e desequilíbrio eletrolítico, choque hipovolêmico e alto risco de morte (Figuras 5 - 6 & 7).

Figura 5- Microfotografia em microscopia óptica comum de uma biópsia de de intestino delgado de um paciente portador de infecção por Escherichia coli enteropatogênica O111 evidenciando a presença de nichos bacterianos firmemente aderidos à superifície epitelial dos enterócitos.

Figura 6- Ultramicrofotografia de uma biópsia de intestino delgado de um paciente portador de infecção por Escherichia coli O111 na sua fase incial de produção da clássica lesão denominada "attachment and effacement".

Figura 7- Ultramicrofotografia de uma biópsia de intestino delgado de um paciente portador de infecção por Escherichia coli enteropatogênica O111, evidenciando a presença da bactéria formando um pedestal sobre o enterócito com as microvilosidades totalmente destruídas.
Portanto, o diagnóstico correto e a intervenção terapêutica eficaz se revelam de crucial importância, não somente para o indivíduo enfermo, mas também para propor medidas de prevenção para proteção de toda a comunidade aonde ele vive, para evitar que o agente enteropatogênico se dissemine de forma incontrolável. A maioria das infecções entéricas são contraídas através da água e/ou dos alimentos contaminados, e estas infecções podem ser transmitidas por contato direto pessoa-pessoa, principalmente em condições de grandes conglomerados humanos ou em comunidades desprovidas de fornecimento de água potável e saneamento básico que apresentam altas taxas de contaminação ambiental, tal como ocorre em nossas favelas.

Durante a década de 1980 estimava-se que de 3 a 20% dos episódios de diarréia aguda tornavam-se persistentes, porém um estudo epidemiológico mais recente realizado em uma comunidade brasileira evidenciou que esta taxa caiu para 1,4%. A diarréia persistente apresenta alto impacto nas taxas de morbidade e mortalidade nas populações pediátricas dos países em desenvolvimento e mais de 50% das mortes por diarréia estão associadas à persistência da mesma. A maioria das mortes costuma atingir crianças de tenra idade, que vivem nas regiões rurais, em condições de pobreza extrema e desprovidas de saneamento básico. A persistência da diarréia devido a uma disfunção digestivo-absortiva provoca agravo nutricional pondero-estatural, bem como futuro rebaixamento das funções cognitivas e intelectuais, que irão prejudicar o desempenho escolar e conseqüentemente limitando de forma inexorável todo um porvir pessoal e profissional.

Definição

Diarréia Persistente (DP) foi definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1987, como uma síndrome diarréica de causa presumivelmente infecciosa que se inicia como um episódio agudo e que se prolonga de forma não usual, por um período igual ou superior a 14 dias, acarretando agravo do estado nutricional e alto risco de morte. O termo não inclui as formas potencialmente crônicas ou recorrentes de diarréia, como o sprue tropical, doença celíaca, fibrose cística e outras afecções hereditárias com manifestações diarréicas. A utilização deste “ponto de corte” de 14 dias de duração para distinguir diarréia aguda da DP se justifica pelo fato de que as taxas de mortalidade observadas em crianças com diarréia de até 14 dias sobem de 0,8% para 14%, quando a duração do episódio diarréico supera este período de dias.
A Figura 8 é um típico exemplo de um paciente portador de DP grave com alto risco de morte atendido na Unidade Metabólica "Horácio Toccalino" do Hospital Umberto I da qual fui chefe na década de 1980 até seu fechamento em 1993 (Figuras 9 - 10 & 11). A partir deste capítulo nós seguiremos a saga de A, na sua desesperada luta para sobreviver à esta guerra que foi deflagrada em seu intestino mas que afetou seu organismo integralmente. Não desejo fazer suspense, por isto desde já antecipo que A, com o auxílio de extraordinária equipe de saúde e sua férrea vontade de viver, venceu brilhantemente esta dramática batalha contra um microorganismo invasor, como será demonstrado com o passar dos capítulos.


Figura 8- Foto de A momentos após sua internação portador de DP provocada por uma cepa de Escherichia coli enteropatogênica O111, em sua dramática batalha pela sobrevivência que felizmente resultou vitoriosa após longo período de internação.

Figura 9- Minha foto tirada da porta de entrada da Unidade Metabólica que homenageou meu querido e saudoso mestre Horácio Toccalino.

Figura 10- Nosso pessoal da enfermagem devidamente treinado e capacitado para cuidar dos pacientes internados na Unidade Metabólica.

Figura 11- Paciente portador de diarréia sendo submetido à balanço metabólico com a coleta de urina separada das fezes para se poder ter um cálculo preciso das perdas fecais e de urina, o que muito contribui para o cálculo exato da reposição hidro-eletrolítica. A utilização rotineira desta técnica possibilita uma significativa diminuição do tempo de internação e ao mesmo tempo reduz tremendamente as taxas de mortalidade intra-hospitalar.

No nosso próximo encontro continuarei a descrever os aspectos mais proeminentes deste problema que ainda é de ordem mundial.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

A história da realização de um Pós-Doutorado na Cornell University, Nova Iorque (13)

O Projeto de Pesquisa Experimental: “Absorção de Macromoléculas Intactas Pelo Jejuno De Ratos in vivo: Influência Dos Sais Biliares Taurocolato, Colato e Deoxicolato”

Discussão

A- O Típico Modelo da Enteropatia Ambiental
A presença das bactérias da flora colônica na luz do jejuno, ao superar os mecanismos fisiológicos existentes para seu controle em local adequado (íleo terminal e colon) como pode ocorrer em diversas situações clínicas, cujo exemplo mais marcante é o da Enteropatia Ambiental, provoca algumas anormalidades de forma direta e indireta.

As bactérias da flora colônica, em especial as anaeróbias, como por exemplo, Bacteróide e Veilonella, estando presentes na luz do intestino delgado alto passam a competir com o hospedeiro quanto ao melhor aproveitamento dos nutrientes da dieta, a saber: 1- Proteínas: as bactérias utilizam as proteínas da dieta para seu metabolismo próprio além da vitamina B12 e do ácido fólico, sendo que seus subprodutos são absorvidos pela mucosa intestinal e eliminados na urina sob a forma de Indican (Figura 1).
Figura 1- Representação esquemática da ação das bactérias sobre as proteinas e vitaminas da dieta.

2- Carboidratos: as bactérias utilizam os carboidratos da dieta para seu metabolismo próprio fermentando-os e transformando-os na luz do intestino delgado em ácidos orgânicos voláteis de cadeia pequena e média, tais como ácido láctico e acético. Estes ácidos orgânicos em parte serão absorvidos pela mucosa intestinal e serão eliminados pela respiração sob a forma de Hidrogênio, enquanto que outra parte permanece na luz do intestino e exerce importante efeito osmótico acarretando secreção de água desde o leito vascular para o interior do intestino provocando sintomas, tais como, diarréia, flatulência, distensão abdominal e cólicas (Figura 2).

Figura 2- Esquema da diarréia osmótica provocada pela má absorção dos carboidratos da dieta.

As bactérias podem também provocar alterações morfológicas nos enterócitos particularmente nas microvilosidades, região aonde se encontram as dissacaridases, enzimas responsáveis pela digestão dos dissacarídeos da dieta, levando à deficiência das mesmas. Pariticular importância refere-se à lactase, a mais vulnerável das dissacaridases, responsável pela digestão da lactose, o dissacarídeo encontrado praticamente apenas no leite. Naquelas crianças de tenra idade em que o leite representa um majoritário aporte nutricional, a deficiência de lactase pode resultar em efeitos colaterais dramáticos ocasionando diarréia crônica e importante agravo do estado nutricional (Figura 3);

Figura 3- Representação esquemática da ação das bactérias sobre as dissacaridases, em especial, sobre a lactase.

3- Gorduras: as bactérias podem atuar sobre os ácidos graxos das gorduras da dieta produzindo uma beta-hidroxilação dos mesmos. Este novo composto orgânico tem capacidade catártica e provoca irritação da mucosa colônica gerando diarréia (Figura 4).

Figura 4- Representação esquemática da ação das bactérias sobre os ácidos graxos componentes das gorduras da dieta, causando beta hidroxilação dos mesmos.

As bactérias colônicas podem provocar anormalidades na função digestivo-absortiva de forma indireta por sua atuação sobre os sais biliares primários, ácido cólico e quenodeoxicólico, desconjugando-os e 7 alfa desidroxilando-os e transformando-os em sais biliares secundários e desconjugados, ácido deoxicólico e ácido litocólico, os quais como já vimos anteriormente terão inúmeras ações lesivas morfo-funcionais sobre a mucosa do intestino delgado.

O clássico exemplo clínico desta situação fisiopatológica está bem caracterizado nos pacientes portadores de Enteropatia Ambiental. São crianças que vivem em ambientes promíscuos socialmente vulneráveis em comunidades desprovidas de água potável e saneamento básico com elevados níveis de contaminação ambiental, como é a típica situação de vida em nossas favelas (Figuras 5 & 6).

Figura 5- Uma favela brasileira, verdadeira fossa negra a céu aberto, e as crianças brincando nas águas contaminadas.



Figura 6- Uma típica favela brasileira, esta no nosso Nordeste.

Baseados nos achados desta investigação experimental, já de retorno ao Brasil, juntamente com meus estudantes de pós-graduação, nos dedicamos a um trabalho comunitário envolvendo crianças faveladas moradoras da favela Cidade Leonor, em São Paulo, aonde tivemos a oportunidade de confirmar os altos índices de desnutrição protéico-calórica (Figura 7), deficiente capacidade absortiva (Figura 8) e altas taxas de ocorrência de sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado (Figura 9).

Figura 7- Classificação do estado nutricional das crianças por nosso grupo atendida na favela cidade Leonor.

Figura 8- Deficiência da absorção da D-xilose em crianças da favela cidade Leonor.


Figura 9- Sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado em crianças da favela cidade Leonor.
Este projeto de investigação representa um clássico exemplo de como os conhecimentos adquiridos por meio da pesquisa básica, nas bancadas dos laboratórios, utilizando animais de experimentação, a partir da elaboração de um modelo que reproduz situações vivenciadas na prática clínica, pode desvendar as conseqüências íntimas de um sem número de mecanismos fisiopatológicos, e, consequentemente propiciar as propostas de medidas de prevenção e tratamento adequados.

Desdobramentos deste Projeto de Pesquisa
Vale salientar que os resultados preliminares deste trabalho foram pela primeira vez apresentados no Congresso da Federation of the American Society for Experimental Biology (FASEB), realizado em Atlantic City, Nova Jersey, em 1978 (Figura 10) e publicado na revista Federation Proceedings 12:433,1978 título: “Bile-salt-enhanced jejunal macromolecular absorption”, autores “Ulysses Fagundes-Neto, Saul Teichberg, Mary Ann Bayne, Fima Lifshitz”.
Figura 10- Nosso poster exposto no Congresso da FASEB em Atlantic City.

A versão completa deste trabalho foi apresentada como minha tese de Doutorado em Gastroenterologia na Escola Paulista de Medicina em 1979, com o título “Absorção de Macromoléculas Intactas pelo Jejuno de Ratos In Vivo: Influência dos Sais Biliares Taurocolato, Colato e Deoxicolato” tendo sido aprovada com nota 10,0 (dez). Posteriormente este trabalho foi publicado na revista Journal of Laboratory Investigation 44:18-26,1981, título: “Bile-salt-enhaced rat jejunal absorption of a macromolecular tracer”, autores: “Ulysses Fagundes-Neto, Saul Teichberg, Mary Ann Bayne, Fima Lifshitz”.
Além deste projeto de pesquisa experimental, baseando-se nos mesmos princípios metodológicos e nas mesmas técnicas, mas variando o modelo animal 2 outros trabalhos foram desenvolvidos neste período de Pos-Doc no laboratório de Pediatric Research, no North Shore University Hospital, os quais também estão publicados na literatura médica internacional. O primeiro deles refere-se às mesmas condições metodológicas, porém, desenvolvido em modelo de indução de desnutrição protéico-calórica em ratos e o segundo em ratos desmamados submetidos à dieta crônica com lactose, a saber: American Journal of Clinical Nutrition 343:1281-91,1981, título “Jejunal macromolecular absorption and bile-salt deconjugation in malnourished rats”, autores “Ulysses Fagundes-Neto, Saul Teichberg, Mary Ann Bayne, Fima Lifshitz” e Pediatric Research 17:381-39,1983, título “Disaccharide feedings enhace rat jejunal macromolecular absorption”, autores “Ulysses Fagundes-Neto, Saul Teichberg, Mary Ann Bayne, Raul Wapnir, Fima Lifshitz”, respectivamente.
Considerações Finais
Ao cabo da jornada pude finalmente responder todas aquelas questões que insistiam em me atormentar antes de tomar a decisão definitiva de aceitar o convite para trabalhar nos Estados Unidos. O local aonde vivíamos era perfeitamente adequado para uma família que lá estaria em caráter temporário, e, além disso, se encontrava a exatos 5 minutos de caminhada até o hospital; tive a oportunidade, no hospital, além de desenvolver minhas atividades de pesquisa experimental, atender pacientes e travar conhecimento com enfermidades pouco comuns em nosso país naquela época, portanto, não me afastei da prática clínica o que tanto me preocupava; rapidamente me adaptei às novas funções de investigador de bancada graças principalmente, além de um grande esforço pessoal, por ter encontrado uma companheira de trabalho maravilhosa que foi Mary Ann Bayne, que pacientemente me ensinou todos os truques e técnicas necessárias para desenvolver os trabalhos de investigação; além dela encontrei em Saul Teichberg, um grande amigo, sempre disposto a me ensinar os detalhes das preparações histológicas e os meandros da Biologia Celular, bem como compartilhar comigo as emoções das novas descobertas científicas que nosso projeto revelava; no campo pessoal sentia-me muito feliz por estar fazendo algo inteiramente inédito na minha carreira e obtendo resultados positivos, meu foco de trabalho era essencialmente o projeto de pesquisa, não tinha que desempenhar outras tarefas que pudessem dispersar meus pensamentos, e nem tampouco outras preocupações quer sejam profissionais ou pessoais; no campo familiar tudo era extremamente tranqüilo sem sobressaltos, a vida nos Estados Unidos era absolutamente estável, não havia inflação como no Brasil naqueles anos, tudo era perfeitamente planejável a médio e longo prazo, o valor do dinheiro não sofria oscilações, não havia quaisquer problemas de segurança, todos podiam se deslocar para qualquer lugar sem que houvesse sobressaltos, havia plena liberdade de expressão coisa que no Brasil não existia (estávamos ainda sob a vigência da ditadura), podíamos desfrutar de inúmeras atividades culturais e de lazer a preços módicos, enfim, havia todo um conjunto de fatores que propiciava o desfrutar de uma vida acomodada; nos fins de semana podíamos passear nos parques públicos e muitas vezes assistir a concertos ao ar livre da Filarmônica de Nova Iorque tocando no Eisenhower Park (era nosso parque preferido) (Figuras 11 & 12) ou viajar e conhecer diferentes e maravilhosos lugares próximos ou mesmo distantes de Nova Iorque (Figuras 13 – 14 - 15 & 16) aproveitando, assim, esta oportunidade única de uma vida absolutamente descompromissada com o futuro material.

Figura 11- Juliana e Marina se divertindo em um fim de semana no play-ground do Eisenhower Park.

Figura 12- Um fim de semana no Eisenhower Park quando da minha participação de uma corrida de 6 milhas. Uly também correu 3 milhas e foi premiado como o mais jovem participante da prova.

Figura 13- A família em visita ao Cloister um castelo medieval trazido da Europa por um milionário americano e transplantado no norte de Manhatan.

Figura 14- Uly e as cerejeiras em flor no jardim japonês do jardim Botânico do Broolkyn. Elas florescem apenas uma vez ao ano e a floração dura apenas 15 dias.

Figura 15- Região das Thousand Islands, no lago Ontário, Canadá em uma das viagens de verão.

Figura 16- Uly, Juliana e Marina em um passeio de barco pelo lago Ontário na região das Thousand Islands.

Porém, a despeito de todos estes fatos, para quem tem raízes assentadas na sua terra natal e que tem desejos incontroláveis de ser um agente de transformação do status quo, esta situação confortável não satisfazia aos anseios dos nossos ideais, e as saudades das nossas coisas no Brasil sempre nos remetia ao país e o desejo de voltar era muito mais intenso do que o apelo para lá permanecer, e ser apenas um a mais naquela imensa multidão totalmente anônima. Por isso, o sentimento do retorno falou mais alto, e assim retornamos, e aqui pudemos exercer o papel de agente de transformação de forma plena, sem quaisquer arrependimentos. Valeu à pena a experiência, foi extraordinária sob todos os aspectos que se queira considerar, mas valeu ainda mais voltar ao nosso rincão, onde as raízes estão sólida e profundamente fincadas há muitas gerações.
Aqui termino a história de vida pessoal e profissional em Nova Iorque, mas antes é necessário enfatizar que na volta, logo após minha chegada enviei um projeto de pesquisa à FAPESP baseado em tudo aquilo que havia aprendido no meu Pos-Doc, e solicitei 2 bombas de perfusão, para poder transportar para cá o modelo de pesquisa que lá havia desenvolvido. O projeto foi aprovado as bombas de perfusão foram compradas, e, com esta aquisição pudemos implantar a técnica da perfusão intestinal em ratos em nosso meio. Inúmeros projetos de pesquisa passaram a ser realizados utilizando esta metodologia, o que resultou em uma ampla série de trabalhos de tese de Mestrado e Doutorado de alunos meus oriundos dos mais diferentes locais do país. Eu passei a ser um agente de transformação, conforme havia sonhado e planejado.
No nosso próximo encontro iniciarei um novo tema de grande interesse atual para a nossa especialidade.