sexta-feira, 14 de maio de 2010

A história da realização de um Pós-Doutorado na Cornell University, Nova Iorque (4)

O Projeto e a Elaboração da Tese de Doutorado
Considerando as observações subjetivas de bem estar de saúde das crianças índias na primeira visita ao PIX,em dezembro de 1970, as quais foram reafirmadas nas visitas posteriores nos anos de 1971 e 1972, sob a orientação do Prof. Roberto Baruzzi, decidimos elaborar um projeto de pesquisa para avaliar de forma objetiva, utilizando métodos antropométricos cientificamente comprovados, o estado nutricional das crianças índias habitantes da região do Alto Xingu. Entretanto, naquela ocasião deparávamos com um obstáculo que à primeira vista parecia potencialmente intransponível, qual fosse não dispor das idades das crianças, pois os índios não utilizam calendário e, portanto, tampouco têm o hábito de registrar a data de nascimento dos seus filhos. Naqueles tempos primordiais das atividades assistenciais da EPM, que se iniciaram em 1965, devido às dificuldades de comunicação entre nossa cultura e a da população indígena, não havia sido criada ainda uma ficha de identificação suficientemente confiável para que pudesse ser adotada na realização de um trabalho científico. A execução deste projeto de pesquisa revelou de forma cabal e definitiva a importância de ser elaborado um controle de identificação rigoroso da população do PIX, o que, diga-se de passagem, de há muito tempo passou a ser feito com a devida acurácia. Portanto, este projeto de pesquisa não somente teve um cunho científico como também despertou a atenção para necessidade de se realizar um inventário demográfico da população do PIX (Figuras 1 – 2 – 3 & 4).


Figura 1- Prof. Baruzzi e eu no trabalho preliminar de identificação das crianças para serem incluidas no projeto de pesquisa.

Figura 2- Prof. Baruzzi fazendo o trabalho de identificação fotográfica de uma criança índia.


Figura 3- Ficha de identificação das crianças já na aldeia durante o trabalho de campo.

Figura 4- Vista aérea do trabalho de campo.

O fato que se apresentava era a possibilidade de se realizar um projeto de avaliação do estado nutricional de uma população nativa, vivendo praticamente nas mesmas condições que aquela verificada por ocasião do descobrimento do Brasil, em suma uma oportunidade absolutamente original. Aliás, vale ressaltar que, embora de forma meramente visual, este tipo de avaliação já havia sido feita por alguém que não era médico e sim escriba da expedição de Pedro Álvares Cabral. Trata-se de Pero Vaz Caminha que, em minha opinião, revelou-se ser o primeiro Nutrólogo de língua portuguesa que se tem notícia. Este fato ficou atestado em sua carta endereçada ao rei de Portugal, Dom Manoel “O Venturoso”, imediatamente após aqui desembarcar, conforme a transcrição que no quadro abaixo se pode ler:


Suas impressões a respeito do estado nutricional dos nativos brasileiros também foram por mim confirmadas desde meus primeiros contatos com os índios do Alto Xingu (Figuras 5 - 6 – 7 – 8 & 9).


Figura 5- Tradicional luta do "uca-uca" durante festa do Kuarup. Notar a excelente forma física dos índios.


Figura 6- Dança tribal na festa do "jawari", onde toda a aldeia participa ativamente.


Figura 6- Festa do "jawari" momentos antes do início das disputas com flechas. Ao centro o chefe Camaiurá, Tacuman, o pagé de maior prestigio no Alto Xingu, com quem compartilhávamos os tratamentos médicos e de quem me tornei um grande amigo.



Figura 7- Festa tribal em que se pode observar o excelente estado físico dos índios.


Figura 8- Lactente sorvendo o leite materno e excelente estado nutricional.

Entretanto do ponto de vista científico, apenas a impressão subjetiva de eutrofia não era aceitável, impunha-se uma investigação que preenchesse as exigências da ciência, porém, conforme anteriormente referido, não dispúnhamos do conhecimento da idade das crianças. Fui, então, em busca de auxílio entre os nutrólogos, experts em matéria de avaliação do estado nutricional de populações, mas essa busca de ajuda resultou inútil, visto que todos os profissionais consultados apenas conheciam métodos antropométricos dependentes da idade exata. Diante deste dilema decidi fazer uma extensa pesquisa bibliográfica na esperança de encontrar uma solução para este impasse. Felizmente, após muito pesquisar encontrei uma série enorme de publicações, principalmente em populações africanas, que deparavam com os mesmos problemas por nós encontrados, e que, para contorná-los, adotavam métodos independentes da idade exata ou mesmo independentes da idade.
Basicamente, o primeiro tipo refere-se àquelas medidas que não necessitam do conhecimento exato da idade, relativamente ao mês ou semana, mas requerem uma classificação aproximada da idade, especialmente das crianças que se encontram dentro dos 2 primeiros anos de vida. Estas medidas se baseiam na avaliação de uma variável antropométrica que apresenta alteração gradual a cada ano de idade, ou então relações corpóreas que se alteram com o decorrer dos anos.

Por outro lado, as medidas independentes da idade baseiam-se essencialmente em estabelecer relações entre um tecido nutricionalmente lábil e uma estrutura orgânica sobre a qual a desnutrição protéico-calórica possui efeito menos contundente, ou seja, são realizadas comparações entre medidas que se afetam pelas influências do meio ambiente, em particular a nutrição, com medidas que se encontram sob controle genético. Na prática, a adequação peso-estatura é o melhor indicador para a avaliação do estado nutricional, porém esta relação ao ignorar a idade da criança permite avaliar o estado nutricional atual do indivíduo, ou seja, se existe naquele momento uma adequação do peso em relação à estatura, mas não permite afirmar uma possível existência de desnutrição no passado. Em outras palavras, pode-se verificar a existência de uma adequação atual do peso em relação à estatura, mas não possibilita a análise retrospectiva do estado nutricional do indivíduo, isto é, torna impossível saber se sua estatura está adequada à idade cronológica. Portanto, não permite descartar a ocorrência de nanismo nutricional.

O conhecimento da idade exata da criança permite estabelecer a diferenciação entre desnutrição aguda (peso inferior ao esperado para a idade e estatura adequada para a idade) e desnutrição pregressa, de longa duração (peso adequado à estatura, porém ambas as medidas inferiores á normalidade para a idade), e ainda reconhecer a existência de associação de desnutrição atual com pregressa. Para poder contornar a possível ocorrência deste viés decidimos realizar a avaliação do estado nutricional das crianças durante 3 anos consecutivos, sempre na mesma época do ano (julho), para evitar possíveis influências sazonais sobre a variável a ser investigada.
Nosso próximo encontro irei descrever nossas atividades no trabalho de campo na coleta dos dados antropométricos durante os 3 anos do projeto de pesquisa, a saber: 1974 – 75 - 76.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

A história da realização de um Pós-Doutorado na Cornell University, Nova Iorque (3)

Tese de Doutorado em Pediatria
Estávamos nos meados de Dezembro de 1970, eu juntamente com meus colegas de turma comemorávamos o fim do nosso curso de Medicina pela Escola Paulista de Medicina (EPM) com uma chopada e música, em frente ao Hospital São Paulo, quando veio um comunicado urgente do Parque Indígena do Xingu (PIX) informando que havia uma grave epidemia de gripe afetando a população indígena das tribos do Alto Xingu, e solicitando o envio imediato de médicos para prestar assistência aos enfermos. Dr. Roberto Baruzzi, coordenador das atividades de atenção à saúde da EPM no PIX, buscava desesperadamente médicos que pudessem atender este pedido de urgência, e como não houvesse encontrado auxílio disponível naquele momento decidiu lançar mão dos recém formados que estavam festejando o término de um longo percurso de 6 anos como acadêmicos do curso médico. Eu fui contatado e de pronto aceitei aquele que seria meu primeiro desafio como médico, o qual vinha acumulado com alguns agravantes, tais como, trabalhar em um local fora dos meus domínios corriqueiros, com uma população de cultura e idioma totalmente diferentes daquela que eu estava acostumado a lidar até então, e, mais ainda, não teria a supervisão de meus tutores para discutir minhas prováveis dúvidas de conduta. De fato quando lá chegamos eu e Rubens Belfort (Figura 1), meu colega de turma, éramos apenas os dois para cuidar da população das 9 aldeias que compõe a região do Alto Xingu, a situação era dramática.


Figura 1- Rubens Belfort e eu em um momento de descanso das atividades assistenciais saboreando um delicioso beiju recém assado.

Havia um grande número de crianças e adultos atingidos pela epidemia, a maioria de forma leve, porém alguns mais gravemente enfermos necessitavam de assistência mais cuidadosa. Adaptamos no Posto Leonardo uma grande enfermaria em um dos galpões que serviam de alojamento para os visitantes e ali internávamos os casos mais graves que necessitavam medicação intra-venosa (Figura 2 - 3 & 4).



Figura 2- Vista panorâmica do Posto Leonardo, ressaltando os grandes pequiseiros, à direita o galpão da enfermaria improvisada e ao fundo a cedificação da farmácia, local do primeiro atendimento médico.


Figura 3- Vista aérea do galpão que foi improvisado como enfermaria para atendimento dos casos mais graves.
Figura 4- Vista geral da enfermaria improvisada para atender os casos de gripe mais graves.

Os casos mais leves eram cuidados nas próprias aldeias que visitávamos duas vezes por dia (Figura 5 & 6).

Figura 5- Visão geral de um atendimento dos casos leves de gripe na aldeia Uaura.

Figura 6- Cena de atendimento na aldeia Iualapiti.

Foi uma experiência fantástica, heróica mesmo, e ao cabo de 2 semanas de trabalhos ininterruptos pudemos celebrar uma grande vitória, pois não havíamos perdido nenhum paciente, a epidemia foi superada com mortalidade zero. Pudemos assim voltar a São Paulo para participar das cerimônias de formatura com as glórias de havermos vencido nosso primeiro grande desafio como médicos.
À parte desta experiência assistencial durante todo o tempo que lá estive, cada vez mais me impressionavam alguns aspectos sócio-culturais daquela gente. Aprendi que o aleitamento natural é verdadeiramente “natural”, pois era prática universal naquela comunidade, não havia outro tipo de alimentação (os índios não tem atividade pecuária) para os lactentes e, além disso, era realmente prolongado porque havia visto inúmeras crianças que já caminhavam e ainda mamavam no seio materno (Figuras 7 & 8).

Figura 7- Lactente evidentemente eutrófico no momento da amamentação.

FIgura 8- Criança pré-escolar ainda recebendo aleitamento natural.

Como me especializaria em Pediatria, prestava muita atenção nas crianças e percebia o quanto elas transmitiam um ar de rara e constante felicidade, viviam aos bandos brincando o dia inteiro, fosse no pátio ou nos lagos próximos da aldeia, não havia brigas, riam o tempo todo, desfrutavam de plena liberdade de ir e vir (Figura 9).

Figura 9- Crianças índias nos recebendo em aldeia Coicuro.

Aprendi também que as crianças eram o centro das atenções de toda a comunidade, eram tratadas com enorme carinho e compreensão pelos adultos, nunca vi uma criança ser espancada por seus pais (Figura 10).


Figura 10- Pai pintando filho para participar da festa do Jawari, manifestação cultural das mais tradicionais na região do Alto Xingu.
A olho nu a impressão que me era transmitida transbordava o bem estar e o aspecto saudável das crianças desde tenra idade até os maiores. Percebia que o tipo de alimentação embora monótona quanto à variedade era altamente nutritiva e salutar, composta por mandioca, peixe e frutas silvestres, dentre estas destacando o pequi (fonte rica de vitamina A), havia abundância de comida mas não havia desperdício (Figuras 11 - 12 - 13 & 14) .
Figura 11- Pescaria altamente bem sucedida para uma festa tribal.

Figura 12- Índia preparando a mandioca para extração do ácido cianídrico, potente veneno presente neste vegetal plantado na região do Alto Xingu.


Figura 13- Índia fazendo a lavagem e peneirando a massa da mandioca para extração do ácido cianídrico.
Figura 14- Beiju sendo assado diretamente sobre o fogo.

Na verdade, eu que havia viajado para cuidar de uma população enferma e pretensiosamente acreditava que iria ensinar coisas a uma população de cultura primitiva, acabei aprendendo uma lição de vida que me serviu como um grande ensinamento pessoal e profissional futuro. Enfim, eu definitivamente me apaixonei por aquela “civilização” que veio desmitificar todos os ensinamentos preconceituosos que eu havia aprendido nos livros de História do Brasil nos bancos escolares. Eles conquistaram meu coração e minha mente (Figura 15).


Figura 15- Índia com sua prole e eu, após meu coração e mente terem sidos conquistados por essa gente.

Nos anos seguintes, ainda durante a minha formação na Residência Médica, voltei ao PIX como parte integrante da caravana EPM que rotineiramente para lá se dirigia com o intuito de vacinar a população e cuidar das possíveis intercorrências médicas. Aquela primeira impressão se reafirmava agora ainda com maior intensidade, visto que já havia adquirido alguma experiência clínica e, assim, podia ter um melhor juízo de valores quanto às condições de saúde das crianças índias. Foi a partir desta vivência clínica de que Eutrofia era o padrão nutricional vigente nesta comunidade é que desenhamos um projeto de pesquisa para avaliar de forma objetiva e cientificamente comprovada esta sensação subjetiva que tanto nos chamava a atenção.

No próximo encontro irei relatar detalhadamente o projeto de avaliação do estado nutricional das crianças índias do Alto Xingu.