terça-feira, 30 de março de 2010

A história da realização de um Pós-Doutorado na Cornell University Medical College, Nova Iorque (1)

O Convite

Em 1974, de volta ao Brasil, após realizar minha especialização em Gastroenterologia Pediátrica no Policlínico Alejandro Posadas, em Buenos Aires, no serviço do Dr. Horácio Toccalino, iniciei minhas atividades de Professor Auxiliar de Ensino no Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina (EPM) sob a chefia do Prof. Azarias Andrade de Carvalho. Juntamente com o Prof. Jamal Wehba iniciamos a criação do serviço de Gastroenterologia Pediátrica, partindo do momento zero, porque nada existia da especialidade e, portanto, tudo teria que ser construído. A nossa união tornou-se altamente profícua e em pouco tempo, seguindo as sugestões aprendidas com meu mestre na Argentina, implantamos a assistência ambulatorial, para atendermos os pacientes que nos eram referidos do Ambulatório Geral, a qual rapidamente prosperou e ao mesmo tempo colocamos em prática os procedimentos de investigação diagnóstica e os testes laboratoriais específicos. Concomitantemente prestávamos atenção assistencial e docente aos pacientes internados nas enfermarias de Pediatria do Hospital São Paulo. Assim, em alguns meses já trabalhávamos a todo vapor e nosso serviço crescia celeremente. Constituímos uma excelente parceria com a Profa. Francy Reis Patrício, docente do Departamento de Anatomia Patológica da EPM, que se interessou em fazer as análises das biópsias de intestino delgado, intestino grosso e fígado, e também com o Prof. Nelson Machado, chefe do Laboratório Clínico do Departamento de Pediatria, que implantou os testes de avaliação das funções digestivo-absortivas, todas essas atividades essenciais para um desempenho de excelência na especialidade. Estava, pois, constituída a infra-estrutura do serviço para que pudéssemos dar o primeiro salto de qualidade nas nossas atividades de docentes, ou seja, enveredarmos pela investigação clínica, começar a produzir conhecimentos, um dos pilares mestres da vida acadêmica. Nosso entusiasmo era enorme posto que estávamos edificando algo que crescia dia a dia com bases sólidas, já podíamos vislumbrar os primeiros sinais de que a produção científica estava nascendo e dentro em breve poderíamos apresentar nossos próprios resultados em Congressos Científicos e inclusive iniciarmos uma era de publicações em periódicos indexados. De fato, em outubro de 1975, quando da realização do Congresso Panamericano de Pediatria, em São Paulo, pudemos apresentar uma série de trabalhos, por nós produzidos, nas sessões de Temas Livres. Estes trabalhos chamaram a atenção de um convidado internacional, Dr. Fima Lifshitz, que se interessou tremendamente por tudo aquilo que estávamos construindo na especialidade, e, em um momento de conversação informal ele me convidou para realizar um Fellowship em Investigação Pediátrica em seu serviço, em Nova Iorque, no North Shore University Hospital, afiliado da Cornell University. O convite, feito de uma forma totalmente inesperada, deixou-me absolutamente chocado, entre exultante e preocupado, porque havia menos de 2 anos de chegar da minha especialização em Buenos Aires, estava começando minha vida profissional, recém havia montado consultório, estava casado e agora já com 3 filhos (minha mulher havia voltado grávida da Argentina, nossa segunda filha nasceu em fevereiro de 1974, e logo a seguir nova gravidez e a terceira filha veio a nascer em junho de 1975), era uma enorme responsabilidade que pesava sobre os meus ombros tomar uma decisão sem consultar a família, mas a tentação era irresistível, pois ir trabalhar nos Estados Unidos e mais ainda com Dr. Fima Lifshitz era um privilégio que não podia ser descartado. Vale ressaltar que neste mesmo evento eu havia sido convidado por outro palestrante internacional Dr. Bufford Nichols para ir trabalhar na Baylor University em Houston, no Texas, o que também era uma grande tentação, mas a idéia de viver em Nova Iorque era mais atraente. Mas, sem dúvida alguma, a afinidade com Dr. Fima Lifshitz era mais intensa, inclusive pela própria linha de pesquisa dele que tinha muito a ver com a nossa em virtude da sua origem como pesquisador. Dr. Fima Lifshitz, apesar desse nome estranho, é mexicano de nascimento, filho de um imigrante judeu russo, cursou medicina no México, foi para os Estados Unidos para realizar a residência médica e em seguida tornou-se fellow em Endocrinologia e Nutrição em Pediatria no John Hopkins Hospital, em Baltimore. Quando terminou seu treinamento nos Estados Unidos voltou ao México para trabalhar no Hospital Infantil de México e lá realizou inúmeros trabalhos de investigação clínica que se tornaram clássicos da literatura médica no que diz respeito à diarréia-desnutrição e intolerância aos carboidratos. Seus trabalhos sobre este tema foram publicados nas revistas mais prestigiosas de Pediatria dos Estados Unidos, como por exemplo, Pediatrics e Journal of Pediatrics, no início da década de 1970, e serviram de inspiração para que nós aqui na EPM reproduzíssemos seus resultados. Em virtude da falta de estímulo para seguir vivendo no México, devido as dificuldades de infra-estrutura para trabalhar a contento, associado a um convite para voltar aos Estados Unidos decidiu se radicar definitivamente por lá e foi trabalhar no North Shore University Hospital, chefiando o serviço de Endocrinologia e o Laboratório de Investigação Pediátrica. Por uma coincidência do destino conheci Dr. Fima Lifshitz em Buenos Aires, em outubro de 1974, durante a realização do Congresso Mundial de Pediatria realizado na Argentina. Durante uma sessão de Temas Livres apresentei 2 trabalhos sobre diarréia-desnutrição e sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado que eu havia desenvolvido durante minha especialização no ano anterior no serviço do Dr. Horácio Toccalino. Dr. Fima Lifshitz presidia esta sessão e ficou vivamente interessado nos resultados apresentados, os quais reafirmavam os achados por ele obtidos anteriormente. Iniciamos naquele evento uma empatia que se prolonga por mais de 35 anos, agora um relacionamento absolutamente fraternal até os dias de hoje.
Após o convite de Dr. Fima Lifshitz cheguei à casa exultante de satisfação para comunicar o convite que me havia sido feito e que eu considerava irrecusável apesar de todos os fatores que poderiam pesar ao contrário, tais como uma nova viagem ao exterior por tempo prolongado, abandonar minhas atividades na EPM por uns tempos posto que ainda estivéssemos construindo nosso serviço, interromper minhas atividades recém iniciadas no consultório e que em curto espaço de tempo se mostravam bastante promissoras e, por fim, mas não menos importante envolver minha família em mais uma tresloucada aventura no terreno das incertezas. Tinha que convencer minha mulher que tudo iria dar certo e que apesar de a família ter crescido mais ainda, pois agora fosse constituída por 5 pessoas, a vida nos Estados Unidos seria uma experiência fascinante e baseado nos filmes que assistíamos tudo seria mais fácil e prático, não haveria problemas para levar uma vida tranqüila. As conversas de convencimento foram longas, mas eficazes e ainda durante o Congresso Panamericano pude dizer ao Dr. Fima Lifshitz que aceitava seu convite, e assim acordamos que para lá iríamos em Junho de 1977 para envolver-me com investigação experimental, um antigo e ansiado desejo meu.
Como se vê haveria um relativo longo período de aproximadamente 18 meses de espera para que chegasse o momento da viagem. Portanto, neste interregno de tempo era necessário acelerar as atividades de pesquisa para que eu pudesse antes de me mudar para os Estados Unidos ter já defendido o Mestrado e o Doutorado.

No nosso próximo encontro irei descrever a elaboração e a apresentação da tese de Mestrado.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Esofagite Eosinofílica: uma entidade clínica recentemente reconhecida em evidente expansão mundial (7)

Tratamento da EE

O tratamento da EE baseia-se na eliminação de alimentos da dieta, abordagens anti-inflamatórias (Figura 1) e dilatação esofágica quando estenoses se fazem presentes. É importante assinalar que a dilatação esofágica está associada a uma taxa de risco relativamente elevada de perfuração, desta forma seu emprego deve ser efetivado com a devida cautela. Os pacientes portadores de EE devem ser tratados inicialmente com medicamentos anti-refluxo porque a acidês pode desencadear eosinofilia esofágica, muito embora esta seja em geral de menor magnitude do que aquela associada à EE. Mesmo quando o refluxo patológico não se encontra presente, a exposição ácida apresenta um potencial para irritar a mucosa esofágica inflamada. No caso de ocorrer um insucesso com a terapia contra a doença do refluxo (baseando-se na avaliação histológica), a eliminação de determinados alergenos específicos (através de dietas bastante restritas), ou mesmo a utilização de fórmula elementar baseada em mistura de aminoácidos está indicada.





Figura 1- Representação esquemática da regulaçãoda resposta inflamatória Th2 na EE (Gastroenterology 2009;137:1238-49)
Liacouras e cols. (Clin Gastroenterol Hepatol 2005;3:1198-1206) realizaram um estudo retrospectivo de 10 anos incluindo 381 pacientes e, no qual, observaram que a eliminação de antígenos alimentares, primariamente pela utilização de dieta elementar, refletia em significante redução dos sintomas clínicos e da lesão histológica do esôfago em 98% dos casos. Por outro lado, muito embora a eliminação dietética represente uma estratégia eficiente, é difícil de ser aplicada na prática porque os pacientes geralmente se encontram sensibilizados por múltiplos grupos de alimentos, os quais incluem tipos comuns e incomuns de comidas. Além disso, o resultado do prick test não identifica de maneira uniforme os alimentos mais apropriados para serem retirados da dieta. O patch test tem sido proposto para identificar os alimentos alergênicos e que, portanto, devem ser eliminados da dieta podendo, assim, induzir uma remissão da enfermidade; porém, não tem havido uma consistência nos resultados da aplicação deste teste, o que torna sua utilização, até o presente momento pouco encorajadora.

Apesar de que a prescrição de dieta consistindo exclusivamente de fórmula à base de mistura de aminoácidos resulta eficiente quanto à redução dos sintomas da EE, freqüentemente esta dieta não é bem tolerada devido a sua baixa palatabilidade, necessitando muitas vezes ser infundida por sonda naso-gástrica. Este procedimento a médio e longo prazos torna-se altamente inconveniente para o paciente, o que representa um fator limitante para sua utilização universal.

O uso de glicocorticóides seja por via sistêmica ou por aplicação tópica, tem sido empregado com resultados satisfatórios em um elevado número de pacientes. A prescrição de corticóides por via sistêmica tem sido feita para pacientes que apresentam exacerbação aguda dos sintomas, enquanto que a aplicação tópica tem sido empregada para oferecer controle da doença a longo prazo.

Finalmente, é importante enfatizar que a EE trata-se de uma enfermidade crônica, e como tal, necessita tratamento continuado, posto que as manifestações clínicas quase que uniformemente reaparecem quando a medicação é suspensa, seja quando os corticóides são descontinuados ou a dieta liberada.
Isto posto, terminamos esta extensa revisão de uma enfermidade que se mostra cada vez mais prevalente em todo o universo e que requer, portanto, uma especial atenção quanto ao seu diagnóstico e tratamento (Figura 2).
Figura 2- Representação esquemática do procedimento diagnóstico da EE (Gastroenterology 2009;137:1238-49)
No próximo encontro tratarei de abordar um novo tema que seja do interesse da nossa especialidade.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Esofagite Eosinofílica: uma entidade clínica recentemente reconhecida em evidente expansão mundial (6)

Investigação Diagnóstica

Endoscopia

Uma grande série de anormalidades marcantes na mucosa esofágica tem sido caracterizada à endoscopia, tais como: ranhuras longitudinais, friabilidade, edema, aparecimento de placas esbranquiçadas, exsudatos esbranquiçados, traqueização do esôfago, mucosa semelhante a papel “crepe” e diminuição do calibre esofágico (Figuras 1- 2 & 3).


Figuras 1 -2 & 3 - Mucosa esofágica visualizada à endoscopia em pacientes com EE mostrando a formação de ranhuras (foto à esquerda), uma grande ranhura lateral esquerda (foto do meio) e linhas verticias (foto à direita).

É importante salientar que a suspeita de EE deve ser sempre levantada em qualquer paciente que apresente sintomas semelhantes à doença do refluxo gastro-esofágico associada a uma anormalidade da mucosa esofágica. Embora nenhum dos sintomas seja considerado patognomônico de EE, a presença de um ou mais destes achados são altamente sugestivos para o diagnóstico de EE. Por outro lado, alguns estudos têm inclusive relatado mucosa esofágica de aparência normal.

Avaliação da Biópsia Esofágica

Nos estudos iniciais os relatos dos espécimes de biópsia esofágica referiam-se praticamente apenas aos materiais obtidos do esôfago distal. Entretanto, ao longo dos últimos anos, vem aumentando o número de estudos que incluem também espécimes de biópsia esofágica obtidos da porção média e superior do esôfago. Três pontos importantes emergiram destes estudos, a saber: 1- muitos estudos têm demonstrado que as anormalidades histopatológicas são freqüentes em espécimes de biópsia obtidas de mucosa esofágica com aparência macroscópica normal; 2- deve-se eleger um meio de preservação do espécime de biópsia, que será analisado microscopicamente, que permita identificar eosinófilos com facilidade; 3- à medida que se aumenta o número de espécimes de biópsia há uma relação direta com o achado de um número aumentado de eosinófilos acima de 15 eos/cma (Figuras 4 - 5 & 6)
Figura 4- Microscopia óptica comum em pequeno aumento de espécime de biópsia de esôfago mostrando aumento do número de eosinófilos epiteliais e hiperplasia da camada basal e alongameto das papílas.


Figura 5- Microscopia óptica comum em maior aumento de espécime de biópsia de esôfago na EE evidenciando um grande acúmulo de eosinófilos próximo da luz do esôfago.


Figura 6- Microscopia óptica comum em grande aumento de espécime de biópsia de esôfago mostrando um micro-abscesso eosinofílico.

A experiência clínica sugere que as áreas de aparência mais anormais à endoscopia, bem como a obtenção de espécimes do esôfago proximal e médio (mesmo se a mucosa mostrar-se aparentemente normal) devem ser avaliadas histologicamente. Vale a pena enfatizar que as biópsias do estômago e do duodeno também devem ser obtidas para descartar outras patologias que cursam com eosinofilia em todo o trato digestivo, tais como a gastroenteropatia eosinofílica e mesmo as doenças inflamatórias intestinais.

pHmetria Esofágica
Dados de estudos de monitoração do pH esofágico têm demonstrado que não há quaisquer alterações neste teste em cerca de até 90% dos pacientes.

Manometria Esofágica
Há apenas 3 estudos de investigação da manometria esofágica em pacientes pediátricos com EE que incluem 14 crianças e em todas elas a manometria revelou-se dentro dos limites da normalidade. Por esta razão a manometria não fornece valor diagnóstico na EE.

Ultrasonografia Endoscópica
Há somente 1 estudo que investigou 11 crianças, o qual revelou um espessamento significativo da parede esofágica e das camadas individuais do tecido esofágico, incluindo uma combinação das camadas mucosa e sub-mucosa, bem como da muscularis mucosae, em comparação com controles normais.

Radiologia

O achado radiológico mais característico é o estreitamento da luz do esôfago.

No próximo encontro discutirei a conduta terapêutica da EE.