terça-feira, 28 de outubro de 2008

Refluxo Gastroesofágico e Doença do Refluxo Gastroesofágico: como estabelecer o diagnóstico diferencial (3)


3- Nos lactentes a definição de "problemático" é um desafio, para a família e para o pediatra, posto que a maioria deles não manifesta uma sintomatologia objetiva que possa caracterizar clinicamente a existência da Doença do Refluxo Gastroesofágico (DRG)

A maioria dos autores está de acordo que quando estamos nos referindo a recém-nascidos e lactentes a expressão "problemático" carrega consigo um alto grau de subjetividade. Por esta razão busca-se caracterizar um conjunto de sinais e sintomas que possam diferenciar de forma mais específica Refluxo Gastroesofágico fisiológico da DRG. Em geral, para que os pais ou cuidadores tenham a percepção de que a regurgitação passa a ser um "problema", ou seja, se constitua na DRG, é quando ela está associada com aumento da frequência e do volume do material regurgitado, aumento do número e duração dos episódios de choro e irritabilidade, relato de desconforto ao regurgitar e constantes movimentos de arqueamento do corpo para trás.

4- Determinadas doenças de base presdispõem à DRG crônica e grave
Algumas enfermidades de base predispõem para a ocorrência de DRG crônica e grave, e também podem acarretar complicações que mais adiante serão abordadas. As doenças que apresentam comprometimento neurológico importante, tal como a paralisia cerebral, anormalidades esofágicas congênitas, como atresia de esôfago corrigida cirurgicamente ou hérnia diafragmática congênita, afecções pulmonares crônicas e doenças geneticamente determinadas como a fibrose cística do pâncreas apresentam grande probabilidade de vir acompanhadas com a DRG.

Enquanto que nos adultos algumas outras condições, tais como sobrepeso e obesidade, estão também associadas a uma significante maior prevalência e gravidade da DRG, nas crianças estes dados são escassos na literatura médica, muito embora também haja evidências bastante sugestivas da ocorrência desta associação.

5- DRG pode causar distúrbios do sono
Há relatos de crianças que são despertadas do sono com manifestação sintomática de asma e laringoespasmo com estridor laringeo.

6- DRG pode ser induzida por exercício físico intenso
Há relatos de casos de manifestação de DRG induzida por exercício físico intenso, muito provavelmente desencadeada por aumento significativo da pressão intra-abdominal.

7- DRG pode ser causa de episódios de Torcicolo (vide foto - Figura 1)


Figura 1- Foto de um paciente com Síndrome de Sandifer em posição de defesa contra o refluxo
Está bem estabelecido que a DRG pode ser a causa de episódios de torticolo em crianças neurologicamente normais. Este quadro clínico recebeu a denominação de Síndrome de Sandifer.

8- Tosse crônica, laringite crônica, estridor laringeo e asma podem estar associados à DRG
Refluxo ácido, diretamente por via aspirativa ou indiretamente através de mediadores químicos por via neuronal que causam broncoespasmo, tem sido implicado como causa de asma. Vários estudos na literatura médica tem descrito maior prevalência de sintomas da DRG em crianças e adolescentes com asma do que em crianças sadias.

Refluxo ácido também tem sido descrito associado a sintomas de estridor laringeo.

9- DRG pode causar erosão dentária em crianças e adolescentes
Uma recente revisão sistemática de 17 trabalhos de pesquisa concluiu que crianças com a DRG apresentam um risco significativamente aumentado de desenvolver erosão dentária em comparação com crianças sadias, e, da mesma forma, esta assertiva vale para crianças com problemas neurológicos. Por esta razão é altamente recomendável a realização de inspeção rotineira da cavidade oral nas crianças e adolescentes com a DRG.

10- Refluxo gastroesofágico pode ser causa de apnéia em recém-nascidos
Uma relação causal entre refluxo e apnéia tem sido associada há muitos anos, especialmente em recém-nascidos e lactentes de baixa idade. Entretanto, esta associação poderia simplesmente estar relacionada a ambas condições que são frequentes nesta fase da vida. Investigações clínicas utilizando técnicas de medida do pH intra-esofágico tem demonstrado uma relação direta entre curtos episódios de apnéia fisiológica e refluxo em lactentes. Por outro lado, quando se considera lactentes com comprometimento neurológico deve-se levar em conta a possibilidade de um aumento da incidência de ambos, apnéia e refluxo.

No nosso próximo encontro iremos discutir os inúmeros métodos diagnósticos disponíveis atualmente para o diagnóstico do refluxo gastro-esofágico e as possiveis complicações clínicas da DRG.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Refluxo Gastroesofágico e Doença do Refluxo Gastroesofágico: como estabelecer o diagnóstico diferencial (2)

Consenso Internacional sobre a Doença do Refluxo Gastro-Esofágico

No caso da Doença do Refluxo Gastroesofágico (DRG) há uma grande variedade de definições empregadas tanto na literatura médica quanto na prática clínica. A inexistência de um consenso universal quanto a definição da DRG acrescida das possíveis diferentes manifestações clínicas observadas nas várias faixas etárias que é abrangida pela Pediatria, isto é, recém-nascidos, lactentes, pré-escolares, escolares e adolescentes, pode causar dificuldades para o clínico tanto na interpretação das pesquisas publicadas quanto na compreensão dos testes diagnósticos disponíveis para a caracterização da DRG. Portanto, há uma real necessidade de se estabelecer uma definição uniforme da DRG que venha atender as necessidades específicas de todas as faixas etárias pediátricas. Neste sentido, em abril de 2007, foi criado um grupo de trabalho que reuniu 9 "experts" internacionais da gastropediatria que, durante 1 ano por meio de revisões da literatura médica atual (artigos publicados em revistas médicas internacionalmente indexadas abrangendo pesquisas em seres humanos desde 1987 até 2007), contatos constantes via internet e conferências telefônicas, bem como reuniões presenciais, envidaram esforços para estabelecer um consenso internacional a respeito da definição e classificação da DRG em Pediatria (vide foto - Figura 1).

Figura 1- Membros componentes do Grupo de Trabalho (da esquerda para a direita): Eric Hassal (Canadá), Yvan Vandenplas (Bélgica), Benjamin Gold (EUA), Sibylle Koletzko (Alemanha), Philip Sherman (Canadá), Ulysses Fagundes Neto (Brasil), Seiichi Sato (Japão), Susan Orenstein (EUA) e Colin Rudolph (EUA).

As declarações consensuadas (que se estabeleceram por votação secreta) que constam do documento elaborado pelo grupo de trabalho tem a intenção de servir para o desenvolvimento de futuros manuais de conduta clínica e, também, constituir a base de ensaios clínicos terapêuticos para oferecer o melhor manejo aos pacientes pediátricos portadores de DRG. O documento final foi apresentado parcialmente no 3ºCongresso Mundial de Gastroenterologia Pediátrica, Hepatologia e Nutrição realizado de 16 a 20 de agosto de 2008 em Foz do Iguaçú (vide foto - Figura 2), e, publicado na revista American Journal of Gastroenterology em 2009.


Figura 2- Foto da cerimonia de abertura do Congresso Mundial

Nosso presente relato terá como base todos os aspectos que foram exaustivamente discutidos e acordados. Inicialmente é importante enfatisar que foram estabelecidas 3 faixas etárias distintas para melhor abordar o problema, a saber: recém-nascidos e lactentes (0-12 mêses), pré-escolares e escolares (1-10 anos) e adolescentes (11 - 18 anos).

1- Define-se DRG quando o conteudo refluido do estômago para o esôfago for a causa de sintomas problemáticos para o paciente prejudicando sua qualidade de vida e/ou causa de complicações digestivas ou extra-digestivas.

Nos pacientes adultos esta definição é centrada no relato do próprio paciente e apresenta um significativo grau de credibilidade, porém como na Pediatria nem sempre se pode apoiar na informação do paciente, este fato pode trazer inúmeros problemas de interpretação, dependendo da faixa etária. Foi consensuado que em crianças menores de 8 anos, devido às dificuldades de comunicação verbal, descrição da intensidade e localização da dor, esta queixa pode não ser totalmente crível e passa a depender muito do relato dos pais ou responsáveis pelo cuidado da criança, portanto, devendo ser interpretada com a devida cautela.

2- Os sintomas da DRG variam com a faixa etária
Nos adultos, sensação de queimação retro-esternal e regurgitação são sintomas característicos da DRG e o mesmo é verdadeiro para crianças maiores e adolescentes. Entretanto, em recém-nascidos, lactentes e pré-escolares, devido às dificuldades de comunicação verbal este problema passa a ser um tanto quanto subjetivo e, portanto, mais complicado. Em um estudo realizado nos EUA, em 1997, por meio da utilização de um questionário com pontuação diagnóstica, foram identificadas diferenças significativas na prevalência e intensidade da regurgitação, recusa da alimentação e episódios de choro mais frequentes entre lactentes com DRG comprovada por exame do pH do esôfago em comparação com lactentes saudáveis que serviram como grupo controle. No que se refere a episódios de choro vale a pena tecer algumas considerações. O chôro é também comum ocorrer em lactentes sadios de uma maneira geral; entre 1 e 3 mêses de vida, a duração média das crises de chôro é de 3 horas por dia. A duração média diária das crises de choro no 2º mês de vida é de 2 a 2,5 horas por dia, decrescendo com o crescimento. Dos 4 mêses até o final do 1º ano de vida a duração das crises de chôro permanece bastante constante em torno de aproximadamente 1 hora por dia. Portanto, as crises de chôro "chamadas" de inexplicáveis dependem muito de como o informante se sente influenciado e/ou preocupado com a existência de alguma doença que possa estar afetando a qualidade de vida do lactente. Devem, assim, ser interpretadas pontualmente levando-se em consideração cada caso.

Em estudos realizados no Canadá, em 2006, e na Europa, em 2002, investigando crianças de faixas etárias maiores, entre 1 e 17 anos, os autores observaram que tosse crônica, anorexia e/ou recusa da alimentação e regurgitação ou vômitos foram mais intensos em pré-escolares (1 - 5 anos) em comparação com crianças maiores. Por outro lado, em escolares e adolescentes (6 - 17 anos) os sintomas predominantes foram regurgitação ou vômitos, tosse crônica, dor epigástrica (imediatamente abaixo do ângulo do osso esterno) e queimação retro-esternal.

No nosso próximo encontro continuaremos a discutir as manifestações clínicas digestivas e estra-digestivas da DRG.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Refluxo Gastroesofágico e Doença do Refluxo Gastroesofágico: como estabelecer o diagnóstico diferencial (1)

Conceito

No caso do Refluxo Gastroesofágico (RGE) é necessário fazer uma diferenciação conceitual, ou seja, o que é denominado RGE "fisiológico" daquilo que se considera Doença do RGE. Regurgitação pode ocorrer em até cerca de 80% dos lactentes dentro do primeiro semestre de vida, e deve desaparecer progressivamente em 95% deles, sem qualquer intervenção, até o final do primeiro ano. Pesquisas clínicas realizadas nos EUA e Japão, em 2002, com base em um questionário elaborado para ser respondido pelos pais de lactentes considerados normais, em visitas de rotina ao consultório do Pediatra, revelaram que 67% dos seus filhos regurgitavam diariamente até os 4 mêses de idade, estes sintomas diminuiram para 21% aos 7 mêses e que apenas 5% deles ainda regurgitavam ao final do primeiro ano de vida. Este fenômeno ocorre porque quanto mais jovem for o lactente, ainda mais frequentemente em prematuros, há uma imaturidade na válvula que se encontra entre o final do esôfago e a entrada do estômago. Esta válvula, em condições normais, se abre apenas para dar passagem do conteúdo do esôfago para o estômago, em seguida se fecha e, assim, não permite que haja um retorno do conteúdo gástrico para o esôfago. Esta válvula chama-se Esfincter Esofágico Inferior (vide figura da motilidade esofágica extraída do livro Digestive System de Frank H. Netter) (Figura 1).


Figura 1- Desenho ilustrativo das diferentes pressões ao longo do esôfago até alcançar o Esfincter Essofágico Inferior e sua abertura para o Estômago

Quando esta válvula não se fecha adequadamente pode ocorrer o retorno do conteúdo gástrico para o esôfago o que caracteriza o RGE (Figura 2). O material refluido pode alcançar diferentes niveis apenas ao longo do esôfago, neste caso, denomina-se refluxo oculto. Porém, quando o material refluido alcança a boca, sem que haja qualquer esforço de contração muscular do abdome, e aí é eliminado para o exterior, denomina-se Regurgitação.
Caso esta manifestação não esteja acompanhada de outros sintomas que possam afetar a qualidade de vida do lactente, isto é, o lactente continua ganhando peso e crescendo normalmente dentro do seu canal de crescimento, a regurgitação mesmo que frequente, até prova em contrário, deve ser considerada como RGE "fisiológico".


Figura 2- Exame radiológico contrastado mostrando o estômago repleto de contraste na primeira foto à esquerda e a ocorrência do refluxo gástro-esofágico nas outras 2 fotos.

Esta situação é que os gastropediatras norte-americanos denominam de "happy spitter", em tradução literal "regurgitadores felizes". Vale a pena assinalar que 80% dos lactentes que apresentam RGE "fisiológico" regurgitam mais de uma vez ao dia, até mesmo mais do que 4 vezes ao dia, e, que não há diferenças significativas na incidência da regurgitação quanto ao tipo de aleitamento, natural (seio materno) ou artificial (mamadeira).

No nosso próximo encontro iremos discutir a Doença do RGE, seus sintomas digestivos e extra-digestivos.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Refluxo Gastroesofágico e Colite Alérgica: como estabelecer o diagnóstico diferencial

Introdução

Nos primeiros 6 meses de vida, quando o lactente praticamente se alimenta apenas com leite, seja por meio do aleitamento natural (deve sempre ser a escolha preferencial) ou aleitamento artificial (fórmulas lácteas ou de soja - não é recomendável leite "in natura"), as manifestações clínicas de colite alérgica (quando não há sangramento retal visível) e refluxo gastroesofágico podem ser muito semelhantes, e, assim trazer grande dificuldade para o diagnóstico diferencial, o que consequentemente irá causar dúvidas quanto à escolha do tratamento a ser seguido, posto que as condutas terapêuticas são totalmente diferentes.

Regurgitações frequentes, especialmente após a alimentação, acompanhadas de choro com grande irritabilidade, podem ser manifestações comuns à colica, o que neste caso deve-se à inflamação do intestino grosso (colite) (Figura 1), e à pirose (nome técnico para asia), que ocorre quando o conteúdo gástrico que é ácido entra em contato com a mucosa do esôfago, provocando inflamação do mesmo (esofagite).

Figura 1- Fotografia de exame colonoscópico de paciente com Colite Alérgica. Observam-se micro-ulcerações na mucosa colônica, sangramento espontâneo e grande congestão vascular.
No caso de esofagite em decorrência do refluxo gastroesofágico é importante salientar que nesta fase da vida, na grande maioria dos casos, não houve ainda tempo suficiente para ocorrer uma lesão inflamatória suficientemente grave para provocar sintomas tão intensos. De qualquer forma se esta for a suspeita principal será necessário comprová-la por meio da endoscopia digestiva alta, procedimento seguro, simples e rotineiro nos dias atuais com os avanços tecnológicos existentes, os excelentes profissionais disponíveis e os novos fármacos para sedação associados a controles dos sinais vitais altamente confiáveis.

No entanto, se história clínica revelar que o lactente tem fome, deseja mamar, inicia o ato de amamentação e durante este processo começa a apresentar grande incômodo, com choro e irritabilidade, rechaço ao seio materno ou à mamadeira, mesmo que ocorra algum episódio de regurgitação a hipótese diagnóstica mais provavel é de colite alérgica. Neste caso o procedimento mais indicado é a realização de biópsia retal para demonstrar a existência de um processo inflamatório da mucosa do colon associado à presença de um número significativamente aumentado de eosinófilos, que podem estar presentes desde o epitélio até as camadas mais profundas do tecido colônico. Aqui, também, este procedimento (biópsia retal) é extremamente simples e seguro não necessitando qualquer tipo de sedação, podendo ser realizado no próprio consultório.

No nosso próximo encontro passarei a discutir detalhadamente as manifestções clínicas, os métodos diagnósticos e as opções terapêuticas para cada um dos casos acima mencionados.